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A MEDICINA ILUMINISTA E O VITALISMO: Uma discussão do Nouveaux Éléments de la Science de l’Homme de P.-J. Barthez (1734-1806)

Filosofia

 Universidade do Estado do Rio de Janeiro 

Centro Biomédico

Instituto de Medicina Social

 

Cynthia Silveira Carvalho

A MEDICINA ILUMINISTA E O VITALISMO: Uma discussão do Nouveaux Éléments de la Science de l’Hommede P.-J. Barthez (1734-1806)

Rio de Janeiro

2010

 

Cynthia Silveira Carvalho

A MEDICINA ILUMINISTA E O VITALISMO: Uma discussão do Nouveaux Éléments de la Science de l’Homme de P.-J. Barthez (1734-1806)

 

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre ao Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Ciências Humanas e Saúde.

Orientador: Prof. Dr. André Rangel Rios

A MEDICINA ILUMINISTA E O VITALISMO: Uma discussão do Nouveaux Éléments de la Science de l’Hommede P.-J. Barthez (1734-1806)

 

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre ao Programa de Pós graduação em Saúde Coletiva, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Ciências Humanas e Saúde.

 

Prof. Dr. André Rios (Orientador)

Professor Adjunto - Instituto de Medicina Social - UERJ

Profa. Dra. Marilena Cordeiro Dias Villela Corrêa 

Profa. Adjunta - Instituto de Medicina Social - UERJ

Prof. Dr. Rafael Marcelo Viegas

Diretor Adjunto – Mediateca da Maison France de France do Rio de Janeiro

Prof. Dr. Edson Peixoto de Resende Filho

Professor Adjunto – Instituto de Ciências Humanas e Sociais - UFRRJ

 

AGRADECIMENTOS

 

Inicialmente, agradeço ao Professor Dr. André Rangel Rios, meu orientador, por este feliz encontro, por ter acreditado no tema da dissertação, pela orientação dedicada, segura e gentil na condução do processo do meu crescimento e aprendizado.

Ao meu pai, Ivan Oest de Carvalho, pelo prazer de sua companhia inteligente. Sou grata, especialmente pelo seu amor incondicional e generosidade de toda uma vida.

Aos meus três filhos: à Carla, por sua delicadeza e suavidade, sou grata pelo tempo que aproveitamos juntas. À Maria e João, que são a minha mais forte alegria. Agradeço tê-los ao meu lado todos os dias. 

Agradeço à minha mãe, Vania Dornelles Silveira Carvalho, por seu exemplo de força, dignidade e coragem.

À minha querida amiga e comadre, Angela Moscoso, minha fiel escudeira desde a faculdade, por tanta experiência compartilhada, pelo nosso longo caminho, pela força e por estar sempre dando um jeito de poder me ajudar.

À minha amiga Iracema de Alcântara, por sua força, apoio e orientação.

Ao Professor Dr. Claudio Araujo, meu primeiro mestre em homeopatia, com quem tanto aprendi por muitos anos, que sempre me incentivou a estudar, a quem sempre serei grata e terei como exemplo.

E a todos os amigos que estiveram comigo nesta caminhada ou em outras, mas que estão no meu coração, e não estão aqui mencionados.

RESUMO

CARVALHO, Cynthia S. A Medicina Iluminista e o Vitalismo. Uma Discussão do Nouveaux Éléments de la Science de l’Homme de P.-J. Barthez. Brasil. 2010. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de janeiro, 2010.

A dissertação comenta criticamente as interpretações recentes referentes ao vitalismo no século XVIII, dedicando atenção especial aos Nouveuax Éléments de la Science de l’Homme (publicado primeiramente em 1778), de Paul-Joseph Barthez (1734-1806). Até a segunda metade do século XX, como é primeiramente argumentado nesta dissertação, intérpretes do Iluminismo entendiam a doutrina mecanicista como a herdeira direta da Revolução Científica, bem como a corrente dominante no mundo das “ciências da vida” ao longo de todo o século XVIII. Assim, na historiografia do século passado, o vitalismo era ou escassamente mencionado, ou visto como uma retrógrada corrente anti-iluminista. Mais recentemente, vários historiadores e pesquisadores da história das ciências no século XVIII (sobretudo Williams e Reill) entendem o Iluminismo de um modo mais amplo e plural, considerando o “vitalismo iluminista” (um termo proposto por Reill) como parte integrante de um conceito mais dinâmico de Iluminismo. A seguir, são apresentados a doutrina mecanicista e seus conceitos centrais, bem como as ideias de alguns dos principais representantes do mecanicismo no século XVII e início do XVIII, no caso, mais especificamente, do mecanicismo newtoniano. Em seguida, são expostos e comentados a doutrina vitalista e seus conceitos, no que é dado destaque ao vitalismo na Universidade de Montpellier. Nesse contexto, são comentados conceitos vitalistas, tal como apresentados nos Nouveuax Éléments de la Science de l’Homme, no qual Barthez propõe uma “nova fisiologia” baseada no “princípio vital”; nisso são apresentados sua metodologia de pesquisa, o conceito de “princípio vital”, as “forças sensitivas” e “motrizes” do princípio da vida, além dos conceitos de “simpatia”, “sinergia” e, por fim, o conceito de “temperamento”. Esses conceitos – ou essa terminologia –, tal como é mostrado, não são originalmente concebidos por Barthez, mas foram por ele reapropriados e reformulados em debate com o newtonianismo e demais correntes filosóficas médicas desde a Antiguidade até o século XVIII, assim como com observações e experimentos próprios às investigações médico-científicas da época. Como resultado, é alcançada uma compreensão da doutrina vitalista como um esforço intelectual inovador tanto interagindo quanto integrado com o debate científico contemporâneo, ou seja, os médicos vitalistas se viam e, em geral, eram vistos como atuando segundo os padrões de cientificidade exigidos por seus pares.

Palavras-chave: Iluminismo – Vitalismo – Medicina – Mecanicismo – Barthez - Princípio vital.

ABSTRACT

CARVALHO, Cynthia S. The Enlightenment Medicine and Vitalism. A discussion on the Nouveaux Éléments de la Science de l’Homme from P.-J. Barthez. Brasil. 2010. Master’s Thesis on Collective Health – Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

On the thesis critical comments are made on the recent interpretations of Vitalism on the XVIII century, paying special attention on the Nouveaux Éléments de la Science de l’Homme (first published in 1778), by Paul-Joseph Barthez (1734 – 1806). Since the second half of the XX century, as it is firstly discussed on this thesis, the Enlightenment interpreters understood the mechanist doctrine as the heiress of Scientific Revolution as well as the dominant strain in the “sciences of life” throughout the XVIII century. This way, on the historiographical of the last century Vitalism was scarcely mentioned or seen as a backward anti-Enlightenment school of thought. Recently, historians and researchers on history of Science of the XVIII century (above all Williams and Reill) understand Enlightenment in a more plural way, considering “Enlightenment Vitalism” (a name proposed by Reill) an integral part of a more dynamic Enlightenment concept. Next, the mechanist doctrine and its main concepts are shown, as well as the thoughts of some of the mechanist main followers on the XVII century and the beginning of the XVIII century, more specifically the Newtonian Mechanist. Afterwards, the vitalist doctrine and its concepts are exposed and commented with special attention to the Vitalism at the Montpellier University. Within this context, the vitalist concept are commented as they are presented on the Nouveaux Éléments de la Science de l’Homme, where Barthez proposes a “new physiology” based on “vital principles”; on this way, his researching methodology is presented as well as the “vital principle” concept, the “sensitive forces” and the principle of life “motive forces”, besides the concepts of “ sympathy”, “synergy” and at last, the concept of “temperament”. Those concepts – or this terminology –, as it is shown, are not originally conceived by Barthez, but they were taken and reformed by him on debating with Newtonianism and others Medical Schools strain of thoughts since Antiquity until the XVIII century as well as with experiments and observations of the medical-scientific researches by his own and of his own time. As a result, understanding of the Vitalist doctrine is reached as an in the 18th Century largely well-accepted intellectual effort, fittingly interacting with the contemporaneous scientific debate, that is, vitalist physicians had seen themselves and were also seen by his peers as following the scientific standards of their own time. 

Key words: Enlightenment – Vitalism – Medicine – Mechanism – Barthez – Vital Principle. 

SUMÁRIO

 

 

INTRODUÇÃO

10

1 A FILOSOFIA NATURAL MECANICISTA

15

1.1 O Surgimento da Filosofia Natural Mecanicista baseada nos conceitos de  Newton: a herança de Leibniz e Descartes

15

1.2 A Fisiologia Mecanicista

20

1.3 A Teoria da matéria na Filosofia Natural do século XVIII

24

2 O VITALISMO

26

2.1 A Ciência do Homem

29

2.2 A Universidade de Montpellier

33

2.3 Os Vitalistas de Montpellier

36

2.4 O Vitalismo na Encyclopédie

37

2.5 Quem foi Barthez

40

2.6 Barthez: o professor em Montpellier.

41

3 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DO NOUVEAUX ÉLÉMENTS DE LA SCIENCE DE L’HOMME DE P.-J. BARTHEZ

44

3.1 A proposta metodológica da Ciência do Homem

44

3.2 As Escolas Mecanicista, Animista e Solidista, em relação ao método de filosofar

47

3.3 Os Princípios do Movimento e o Princípio da Vida

48

3.4 O Princípio Vital segundo as escolas médicas e filosóficas

50

3.5 A Natureza do Princípio Vital

53

3.6 As Forças Sensitivas e Motrizes do Princípio Vital nos Sólidos e o conceito de Irritabilidade e Sensibilidade

56

3.6.1 As Forças Sensitivas nos sólidos do corpo

57

3.6.2 As Forças Motrizes nos sólidos do corpo

61

3.7 As Forças Sensitivas e Motrizes do Princípio Vital nos Fluidos do corpo

64

3.8 O Calor Vital

66

3.9 As Simpatias e as Sinergias

70

3.10 O Sistema Inteiro das Forças Vitais – As Forças Ativas e Radicais

77

3.11 A Doutrina dos Temperamentos segundo Barthez

80

3.12 O Princípio Vital segundo os estágios da Vida

86

3.13 O Princípio da Vida e a Morte

88

CONCLUSÃO

95

REFERÊNCIAS

98

APÊNDICES

102

 

INTRODUÇÃO

 

Quando uma palavra é escolhida para sintetizar a história intelectual do século XVIII, esta palavra é “Iluminismo”. Porém, como afirma Roy Porter (2003), a pergunta feita por Emanuel Kant Was ist Aufklärung?  em 1784, ainda permanece um debate inflamado. 

Estudos sobre o Iluminismo refletem pontos de vista por vezes opostos. Alguns defendem o Iluminismo como o berço da liberdade moderna (GAY apud PORTER, 2003, p. 1), e outros o condenam, vendo nele uma semente do mal, origem do surgimento do fascismo e totalitarismo (HORKHEIMER; ADORNO apud PORTER, 2003, p. 1).

Entretanto, se colocamos a pergunta “O que foi a ciência Iluminista?”, as incertezas permanecem; porém, as questões são distintas. Se há uma caracterização que aparece como verdade inquestionável a respeito do Iluminismo, é a de que o Iluminismo adotou e expandiu o projeto intelectual e social ocorrido nos séculos XVI e XVII, denominado de “Revolução Científica” (Reill, 2003). Entretanto, a maioria dos historiadores considera que faltou à ciência iluminista o heroísmo e a genialidade deste movimento revolucionário que veio imediatamente antes, movimento este - segundo esta interpretação - forjado por Joahannes Kepler (1571-1630) e Galilei Galileo (1564-1642), desenvolvido por René Descartes (1596-1650) e Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), e completado por Isaac Newton (1642- 1727). A visão dominante sobre a ciência do século XVIII é a de uma depressão entre dois picos, o da primeira revolução científica, que teve início no século XVI, se estendo por todo século XVII, e o da segunda – do século XIX. Para usar os conceitos de Kuhn (apud PORTER, 2003, p. 3), o século XVIII teria consolidado como ciência normal o paradigma científico dos dois séculos anteriores. Mas como relembra Porter (2003), na virada do século, Leibniz ainda tinha XVI anos para viver e Newton XVII, e a famosa obra de Newton sobre a ótica não havia ainda sido publicada.

Porém, como afirma Laurence Brockliss (2003), “se a Revolução Científica é percebida como um momento cultural expandido, onde o mundo natural de Galileo e Newton tornam-se parte do programa mental da elite europeia e americana, então a Revolução ocorreu no século XVIII.”. Corroborando este ponto de vista, Margareth Jacobs (JACOBS apud PORTER, 2003, p. 3) aponta o século XVIII como a era que o “conhecimento científico se tornou parte integral da cultura ocidental”, em outras palavras, a era em que ele se tornou “conhecimento público”. 

Como comenta ainda Porter, na mesma Introduction do The Cambridge History of Science, a respeito da afirmação de Jan Golinski (apud PORTER, 2003, p. 9), “se a ciência estava ganhando presença no que Jürgen Habermas chamou de ‘esfera pública’- em sociedade, nos salões, em cursos e museus -, estava concomitantemente se tornando estabelecida na mente das pessoas, como uma força ideológica e um ingrediente estimado na aprovada dieta cultural”. Para os philosophes, a pesquisa científica era a nova vassoura que iria varrer a mistificação e o obscurantismo, removendo a linguagem incompreensível da Igreja e dos modos feudais, que mantinham as massas pobres, famintas e oprimidas, visão esta que se evidencia em qualquer um dos vinte e oito volumes da Encyclopédie (PORTER, 2003)

Porém, como comenta Reill (2003), as ciências naturais sempre vêm embrulhadas em ideologia. A voz da “ciência” poderia apoiar a cultura da elite, enquanto poderia desprestigiar as crenças e comportamentos dos piedosos, dos pobres, da plebe, das mulheres e dos marginalizados.

Como é enfatizado por John Brooke (2003), seria imensamente anacrônico colocar uma enorme distância entre a investigação da Natureza e a investigação de Deus, assim como seria simplista afirmar uma transição preordenada entre um cosmos religioso, no qual um Deus pessoal intervinha, para um mais naturalista, governado por leis naturais. Portanto, esta transição de percepção sobre a natureza, introduzida pela revolução cientifica no século XVII, desenvolvida e consolidada no século XVIII, além de gradual, foi não uniforme e irregular. 

Nas vinte páginas da Introdução escritas por Porter (2003) para o volume quatro da The Cambridge History of Science, ele cita uma vez, e de forma breve, o Vitalismo, e quando o faz, o relaciona ao “cientificismo romântico” de Diderot ou à Naturphilosophie.

 

[...] o século XVIII trouxe imensas disputas entre aqueles convencidos que a matemática e a física deveriam prover o modelo para a verdadeira ciência, e os mais “românticos científicos”, como Diderot, ou mais tarde, os filósofos da Naturphilosophie, angariando versões mais holísticas, vitalistas, e subjetivas da natureza. (PORTER, 2003, p.14)

 

Peter Hanns Reill (2003) traz um outro ponto de vista histórico, menos positivista, da ciência do século XVIII. Reill comenta, como Porter, que muitos autores percebem o Iluminismo como uma era na qual o instrumental racional e científico se torna uma característica que define a cultura moderna. Essas relações entre Revolução Científica, Ciência Iluminista e uma avaliação negativa da Modernidade, foram primeiramente concebidas por intelectuais após a segunda guerra, horrorizados pela destrutividade da civilização moderna. Em 1946, Max Horkheimer (apud REILL, 2003, p. 23) defendeu que o colapso da nossa civilização intelectual era resultado do progresso técnico e cientifico e que suas origens derivavam do Iluminismo. Esta linha de análise, ainda posteriormente desenvolvida em Dialectic of Enlightenment (HORKHEIMER; ADORNO apud REILL, 2003, p. 24) por Horkheimer e Adorno, foi então expandida por muitos autores pós-modernistas que se rebelaram contra a hegemonia da racionalidade iluminista e analisaram, como Michel Foucault o fez, a díade conhecimento/poder, que atribui à Ciência um papel de controle e disciplina. 

Os maiores ataques ao Iluminismo são consequentes à sua suposta adoração pela ciência, razão e universalidade, e pelo conhecimento/poder, caracterizado como “O Projeto Iluminista”, baseado no triunfo das ciências de base matemática - mathesis. O filósofo da Ciência Stephen Toulmin descreveu este movimento:

 

Ao escolher os objetivos da modernidade, uma agenda intelectual e prática focada no objetivo do século XVII de exatidão matemática e rigor lógico, certezas intelectuais e pureza moral, a Europa colocou-se numa rota política e cultural que a levou duplamente para o mais espetacular sucesso e às maiores falhas humanas. (TOULMIN apud REILL, 2003, p. 33)

 

Porém, se ainda hoje, quando começamos a refletir sobre o que estava por trás desta poderosa transformação cultural e social, o quadro se torna ainda mais confuso. À medida que estudos, de forma crescente, questionam a uniformidade da Revolução Científica, têm se tornando visível que, se há uma herança, ela é extremamente complexa, contraditória e rica em variadas interpretações. Reill (2003) coloca a questão: “estariam os pensadores da metade e final do Iluminismo totalmente imersos em uma visão mecanicista da natureza, que bloquearia uma visão mais dinâmica de mundo?”

Percebendo a não uniformidade da Revolução Científica, e mais, a natureza gradual e irregular da transição de um modelo de cosmos divino para um modelo explicado pela filosofia e ciências natural, Reill (2003, p. 33) distingue um grupo de pensadores que denominou de “vitalistas iluministas”. Reill reafirma e sublinha que, na grande maioria dos estudos sobre a ciência iluminista, a narrativa mais frequente reconta o triunfo e a disseminação da linguagem newtoniana a respeito da natureza, que reduz a natureza ao mecanismo e os humanos a máquinas. Porém, no ponto de vista deste autor, a filosofia natural mecanicista, incluindo a variedade das correntes newtonianas existentes, nunca conseguiu derrotar totalmente as tradições rivais - como o animismo, a alquimia e derivados, e as variedades correntes de pensamento de Paracelsus. Reill nos propõe não uma visão de “contra-Iluminismos”, ou de Iluminismos que se opunham, mas traz uma percepção mais abrangente do que seria Iluminismo, ciência iluminista e sua visão de natureza. 

 Durante a última metade do século XVIII, variações dessas tradições rivais foram ressuscitadas e reformuladas para criticar alguns dos principais princípios da filosofia natural mecanicista, quando a universalidade de seus princípios foi questionada e duramente atacada. Durante este mesmo período, algumas questões centrais à filosofia mecanicista não foram mais consideradas satisfatórias ou auto-evidentes para um crescente grupo de jovens autores e pensadores. Para esses jovens intelectuais, o relativo sucesso da filosofia mecanicista se tornou suspeito por ter se adaptado tão facilmente; servindo também de suporte para as estabelecidas hierarquias sociais, o absolutismo e a ortodoxia religiosa. Eles fundamentalmente não aceitavam que as leis descritas na filosofia natural mecanicista para explicar a vida, fossem inteiramente redutíveis à vida vegetal ou à animal.

O objetivo desta dissertação é a construção teórica deste grupo de pensadores, os “vitalistas iluministas”, cuja filosofia seria uma atenta reelaboração crítica do pensamento animista e mecanicista. Eles não concordaram com a utilização da filosofia mecanicista para explicar as leis da vida. Postularam então conceitos como aeconomia vitae(organismo ou totalidade), o conceito de princípio ou a força vital e uma fisiologia vitalista, na qual a simpatia e a sinergia seriam responsáveis pela manutenção de uma Harmonia.

Esses pensadores eram de todas as partes da Europa, principalmente da Escócia e França, mas também de países de língua alemã.

Mecanicistas, assim como os animistas e os vitalistas, “trabalharam” com a interação da matéria, animada ou não, com a alma. Os vitalistas propuseram uma terceira substância, nem alma, nem corpo, mas um princípio, poder ou força vital, que seria responsável pela vida, que poderia ser observado, mas não explicado em suas causas primeiras. Essas diferenças de conceitos e perspectiva de visão são fundamentais e serão abordadas neste estudo.

Inicialmente, no primeiro capítulo, farei uma breve revisão das ideias e concepções científicas que precederam o vitalismo do século XVIII. Abordarei a filosofia natural mecanicista, que foi a filosofia científica dominante do final do século XVII e na primeira metade do século XVIII. 

No segundo capitulo, exporei as bases filosóficas do vitalismo iluminista e seus principais conceitos. Apresentarei o conceito de Princípio vital, bem como o conceito de interconexão e unidade promovido pelas forças do princípio vital. Em seguida, com uma abordagem histórica, introduzirei o vitalismo francês, nascido na Universidade de Montpellier, Sul da França, que formará com a medicina de Paris uma eterna rivalidade. Apresentarei o conceito de science de l’homme e sua ligação com o vitalismo. Apresentarei os principais representantes do vitalismo de Montpellier e a importante influência filosófica sofrida pelo vitalismo, advinda das ideias de Georg Stahl, criador do animismo, primeira doutrina surgida no início do século XVIII que tinha como objetivo combater os princípios mecanicistas. Mostrarei a ligação do vitalismo e dos vitalistas com o movimento intelectual parisiense, e a participação dos vitalistas na Encyclopédie.

 No terceiro capítulo, apresentarei e discutirei a obra original de 1778, do principal representante do vitalismo do século XVIII, Paul-Joseph Barthez, médico e professor de Montpellier, o Nouveaux Éléments de la Science de l’Homme. Diretamente através da obra discutirei os conceitos do vitalismo de Barthez, começando com a metodologia por ele proposta, passando pelo conceito de princípio vital, as forças que compõe este princípio, a conexão entre estas forças, representadas pelas simpatias e sinergias, o conceito de sistema inteiro, a doutrina dos temperamentos, e por fim a relação do principio vital com o envelhecimento e seu destino por ocasião da morte. 

No quarto capítulo, serão apresentadas as conclusões finais deste trabalho.

O termo “vitalista iluminista”, que usarei muitas vezes, foi criado por Reill,[1] autor que defende muitos pontos de vista dos quais compartilho e que é o autor inspirador desta dissertação. (Já o termo substantivado “vitalismo” foi usado pela primeira vez tardiamente, por Dumas, em 1804; o adjetivo “vitalista”, porém, era de uso comum, ou seja, Barthez expõe o que seria o Princípio Vital como uma pesquisa em andamento, mas nunca fala de o “vitalismo” enquanto uma doutrina fechada, tal como o faz Dumas, em uma visão retrospectiva).

Espero com este estudo contribuir, ainda que de forma bastante limitada, para reflexões, dentro de uma perspectiva da História das Ideias, de questões tão complexas, presentes até hoje, e que envolvem perguntas como “o que é a vida”, “o que é a matéria”, se ela é animada ou inerte, enfim, questões que foram extensamente debatidas no século iluminista, no século da assim chamada “idade da razão”, e que, em formulações diversas não cessam de ressurgir.

 

1  A FILOSOFIA NATURAL MECANICISTA

 

 

Have not the small particles of bodies certain powers, virtues, or force, by which they act at a distance, not only upon the rays of light for reflecting, refracting, and inflecting them, but also upon one another for producing a great part of the phenomena of nature?... We must learn from the phenomena of nature what bodies attract one another, and what are the laws and properties of attraction, before we enquire the cause which the attraction is performed.

Isaac Newton (Opticks, Querry 31),

 

 

1.1 O surgimento da filosofia natural baseada nos conceitos de Newton: a herança de Leibniz e Descartes

 

A relação entre as ações de Deus e as explicações dos fenômenos naturais, ou seja, o quanto os fenômenos naturais ocorriam por si só ou eram assistidos por Deus, bem como o quanto Deus interferiria ou não na regularidade dos fenômenos naturais, enfim, a questão dos milagres, era questão de debate nos séculos XVI e XVII entre os filósofos naturais e teólogos. Na verdade, a preocupação com temas teológicos, de um modo mais ou menos aprofundado, era compartilhada por todos os filósofos da natureza. Para muitos pensadores e clérigos, a interpretação dos fenômenos naturais e a interpretação da Bíblia não deveriam ser totalmente dissociadas. 

Buscar entender a Natureza e seus fenômenos com base na razão não é, evidentemente, uma proposta nova do século XVIII. Desde a Grécia Antiga, tendo como marco os astrônomos e, em especial, Aristóteles, que teorias sobre a ordem do mundo e do universo, bem como a regularidade de seu funcionamento são discutidas. De fato, o ensino universitário europeu é, no que diz respeito à filosofia natural, até durante o século XVII, baseado no estudo dos textos de Aristóteles. A concepção do universo de um modo mais amplo é baseada, por sua vez, no sistema ptolomaico, que é compatível com as concepções aristotélicas. No entanto, vários novos problemas estão sendo valorizados e novas teorias estão sendo propostas. Também, com o acúmulo de questões e contradições, a proposta de que o entendimento da Bíblia deve se restringir a problemas referentes à moral e à revelação divina, deixando o campo livre para o trabalho do filósofo natural ganha força. Descartes é um pensador de prestígio, e com aceitação por parte da igreja católica, que busca pensar as questões referentes à natureza com relativa independência da intervenção divina. Um ponto bem característico de sua atitude é ele ter considerado não ser essencial apresentar uma explicação da transubstancialização que fosse compatível com as suas concepções físicas. Em todo caso, ainda que ele próprio não tenha ido tão longe, vários outros pensadores consideraram que seu mecanicismo era já a legitimação de um pensamento sobre fenômenos físicos independente da teologia; ou, mais especificamente, excluíam todas as intervenções milagrosas divinas das ciências naturais, assumindo - a partir daí - que este seria o programa de pesquisa a ser seguido.

Os livros didáticos se permitem, em geral, recorrer à simplificação segundo a qual, durante o que seria a primeira metade do Iluminismo, aproximadamente de 1680 a 1740, a filosofia natural seria dominada pelo mecanicismo matemático, expresso em numerosas variações, e teria substituído a filosofia natural Aristotélica. De fato, falando-se em termos amplos, se pode dizer que o projeto da filosofia natural mecanicista consistiria em incorporar os métodos e conceitos da argumentação matemática formal na explicação dos fenômenos naturais. O principal objetivo deste, por assim dizer, projeto, teria sido transformar o conhecimento contingente em verdade certa, reduzindo os múltiplos e variados fenômenos da natureza a princípios simples. Nesse processo, os principais pensadores da filosofia natural mecanicista vieram, tal como Descartes anteriormente já o fizera, a propor novos métodos de observação e análise de dados, bem como uma nova definição da matéria (Reill 2003).

Assim, a despeito das diferenças entre os maiores representantes da filosofia natural mecanicista, Descartes (1596-1650), Leibniz (1646-1716), Boyle (1627-1691) e Newton, entre outros, a maioria aspirava uma representação matemática da natureza. Embora não seja intenção deste trabalho expor e discutir a filosofia natural de Descartes, Boyle ou Leibniz, vou me deter de forma breve em algumas de suas ideias, apresentando algumas diferenças conceituais, dando, porém, mais atenção à filosofia newtoniana. 

Nessa moldura epistemológica, Newton ofereceu uma variante que substituiu os procedimentos metodológicos cartesianos, e em menos extensão, os procedimentos metodológicos de Leibniz. Em sua crítica ao conhecimento hipotético, Newton propôs o que foi mais tarde chamado de “método experimental”, defendendo uma correlação estreita entre experimento e procedimentos explanatórios. Embora Newton não “forjasse nenhuma hipótese”, seu método dependia do poder organizador da lógica matemática. Uma descrição matemática da realidade era vista como a maneira de se escapar dos horrores do conhecimento contingente e incerto. Na hierarquia do conhecimento, o lugar ocupado por qualquer conhecimento específico era estabelecido pelo grau que seu conteúdo pudesse ser traduzido em princípios matemáticos. O trabalho desses pensadores visava estabelecer um sistema extenso de ordem e medida, uma mathesisuniversal, onde a matemática se tornasse a linguagem privilegiada da natureza (REILL, 2003).

Craig Fraser (apud PORTER, 2003, p. 305) esclarece que a atividade matemática no século XVIII possuía uma forte ênfase na análise e na mecânica. Os grandes avanços, segundo esse autor, teriam ocorrido nas partes relacionadas ao cálculo matemático e na elaboração detalhada do programa da inércia mecânica fundada durante a Revolução Cientifica, ou seja, em termos gerais, durante o processo de desvalorização epistemológica do aristotelismo, em favor sobretudo na Física, de um entendimento mecanicista de um universo composto de uma matéria homogênea, e que, para muitos filósofos, também seria inerte. A relação estreita entre matemática e mecânica teve uma base que se estendeu profundamente no pensamento Iluminista. Jean D’Alembert em seu Discurso Preliminar da Enciclopédie distingue entre a matemática puraque ele aponta como sendo a geometria, aritmética, álgebra e calculo, e a matemática mista, que seriam a mecânica, geometria, astronomia, ótica e estatística. D’Alembert denominou a matemática como uma “ciência natural” e a separou da lógica, que seria “ciência do homem”.

Na França e na maior parte da Europa Continental, a filosofia natural escolástica foi substituída em graus variados, ou amalgamada pelo cartesianismo, que, nesse aspecto específico, não diferindo da escolástica, também buscava estabelecer um sistema filosófico integrado no qual a filosofia natural poderia ser deduzida de um consistente conjunto de premissas metafísicas. Leibniz compartilhava com Descartes a ambição de criar um modelo unificado, de caráter metafísico em sua fundamentação, dos fenômenos da Natureza. Embora ele rejeitasse a premissa básica de Descartes de que a matéria era inerte e defendesse a existência de forças inerentes dentro da matéria, Leibniz, como Descartes, procurou, do mesmo modo, construir um modelo filosófico consistente dos fenômenos da natureza baseado na matéria e no movimento. 

No inicio do século XVIII, o cartesianismo estava começando a ser substituído por um sistema da filosofia natural que divergia ainda mais da escolástica - o sistema de Newton. Em contraste com o sistema de Descartes, a filosofia natural newtoniana, tal como era entendida por grande parte de seus seguidores, não seria estreitamente ligada a nenhum esquema filosófico mais abrangente. Como Newton enfatizou na sua escolha do titulo, Principia Mathematica Naturalis Philosophiae (1687), em contraste com o título de Descartes, Principia Philosophiae (1644) – seu sistema era baseado não em lógica, mas em matemática, o que claramente distinguiu o campo da filosofia natural de outros ramos da filosofia.

A divisão entre esses dois sistemas foi um tema importante na vida intelectual europeia da primeira metade do século XVIII. Paralelamente à rivalidade nacional entre a Grã-Bretanha e o continente, a competição entre esses dois sistemas reflete diferentes conceitos a respeito do limite e extensão da filosofia natural. Para os cartesianos, seu sistema oferecia um consistente modelo baseado em um principio absolutamente mecânico de partículas em movimento, principio este estendido a todos os fenômenos da natureza. Para os olhos do cartesianismo, o sistema de Newton, com sua invocação de princípios como o da gravidade, que não tinha uma explicação mecânica, representava um retorno às “qualidades ocultas” da escolástica. Para os newtonianos, por outro lado, o cartesianismo era um “romance filosófico” baseado em explanações verbais e em contraste com o rigoroso tratamento matemático do qual eles se orgulhavam. Como disse Newton em um rascunho de sua Opticks aos cartesianos, “Sem originar as propriedades das coisas dos fenômenos, você inventa hipóteses, e pensa sobre elas para explicar toda a Natureza, e você pode criar um sistema de filosofia plausível que receba seu nome, mas seu sistema será um pouco melhor que um romance” (GASCOIGNE apud GUERLAC, 1977, p. 220).

Segundo a visão de Gascoine (2003), o trabalho de Newton representou um rompimento radical frente às tradições, porque teria abandonado a tentativa de construir um modelo de natureza baseado em premissas filosófico-metafísicas. No ponto de vista desse autor, de certa maneira, Descartes e Leibniz carregaram a mesma missão que Aristóteles, porque tentaram desenvolver um sistema de filosofia natural que explicasse todas as causas fundamentais dos fenômenos da Natureza. E afirma, ainda, que Newton teria tido um objetivo mais limitado ao construir um modelo matemático do mundo visível, que não tentava oferecer uma representação única de todo fenômeno natural que suportasse os outros sistemas da filosofia natural.

Gascoigne (2003) discorre sobre a filosofia natural do século XVIII, descrevendo o mecanicismo em suas variações, de Descartes a Newton. Na visão desse autor, houve uma quase absoluta hegemonia do mecanicismo em relação à filosofia natural deste século. Gascoigne (2003) comenta ainda que o trabalho de Newton teria sido a grande autoridade cientifica de toda a Europa na segunda metade do século XVIII, e que este prestígio de Newton assegurou que a matemática se tornasse o destaque da filosofia natural. 

Gascoigne afirma que o interesse na filosofia natural newtoniana, mais do que qualquer em outro sistema de ideias, foi intensificado, em controvérsias da elite cultural, principalmente entre aqueles que queriam provar que a mente humana poderia desemaranhar os segredos da natureza, e assim fazendo, demonstrar através da obra, a mão do Criador. A tradição de ligar a filosofia natural, principalmente a newtoniana, para a defesa da religião, foi mantida pelos numerosos sermões de Boyle, que chegou a utilizar, em suas preleções, o Principia de Newton, com o encorajamento do mesmo. (GASCOIGNE, 2003, p. 291).

Cita alguns autores com visões mais dinâmicas, em geral materialistas, mas, ao se referir a estas correntes da filosofia natural que percebiam a matéria como sendo “não inerte”, não cita em nenhum momento o movimento vitalista ou o animismo, nem mesmo algum autor ou filósofo, fisiologista ou médico de inclinação vitalista, também presentes neste mesmo século.

Entretanto o Newtonianismo[2] foi, como descreve Gascoigne (2003), uma capa de muitas cores, tingido por diferentes nacionalidades e tradições intelectuais, e ao seu variado material foi dado maior ou menos proeminência. 

Por sua vez, seu colega Hanns Reill, autor do capitulo The Legacy of “Scientific Revolution” - revela discordância em relação ao ponto de vista de seu colega Gascoigne e comenta: “Recentemente, historiadores da ciência do século XVIII têm começado a questionar a hipótese de que a filosofia natural do período possa ser reduzida ao que é frequentemente chamado de mecanicismo matemático.” (REILL, 2003, p. 25). Esse autor completa seu raciocínio dizendo que, na maioria das historias sobre a ciência Iluminista, a narrativa principal reproduz o triunfo e o predomínio da forma de linguagem newtoniana da natureza. E aponta o ensaio de Gascoigne como exemplo desta visão (REILL, 2003, p. 28).

Neste mesmo capítulo, afirma que, no período de 50 anos entre as mortes de Descartes e Newton, a nova filosofia natural não apenas demonstrou habilidade de explicar muitos enigmas da natureza de uma forma mais simples e segura, como também provou capaz de ser empregada para dar sustentação ao sistema religioso, político, social de seu tempo (REILL, 2003, p. 28).

É interessante perceber que, além de questionar diretamente a visão de seu colega Gascoigne, bem como de vários outros historiadores, de que o mecanicismo matemático teria sido a única filosofia natural do século XVIII digna de nota, Reill relativiza a relação direta entre Iluminismo e “Revolução Científica”; ou seja, Reill critica a percepção, bastante usual, ligada ao conceito de Iluminismo – cujo mecanicismo faria parte do status quo do século XVIII – como sendo a semente dos horrores ocorridos no século XX, tal como se vê em Horckheimer[3] e Adorno.

Dentro dessa percepção, Reill abre espaço para o estudo de outras filosofias naturais que fizeram parte da história do século XVIII e que, na maioria das vezes, sequer são mencionadas, dado o predomínio dessa percepção reducionista do Iluminismo. Essas outras formas de filosofia natural, herdeiras de tradições que sustentam a atividade da material, são o vitalismo, o animismo e o solidismo ou materialismo, que abordaremos mais adiante e são o foco desta pesquisa.

1.2 A fisiologia mecanicista 

 

No início do século XVIII, para vários médicos o funcionamento do corpo animal e humano era percebido basicamente em termos mecânicos. O mundo biológico, as plantas e os animais, eram compreendidos sob a classificação de Lineu. De certo modo, a concepção de ordem na natureza parecia compatível com a ideia de criação divina.

Esses conceitos, vigentes nas primeiras décadas do século XVIII, foram desafiados e alargados na metade do século. A fisiologia mecanicista baseada na analogia dos seres vivos com máquinas foi ampliada com os conceitos de Newton e as respectivas “forças de atração newtonianas”.

No fim do século XVII, começo do século XVIII, as explicações mecanicistas tinham grande prestígio no ensino universitário da medicina. Como exemplo, temos os trabalhos de Giovanni Borelli (1608-1679) De motu animalium(1676), que utilizou o modelo hidráulico para explicar a contração muscular, ou o trabalho de Descartes, com seu Traité de l’Homme (1664), que descrevia as sensações fazendo com que as fibras nervosas abrissem pequenas portas no cérebro, para que espíritos animais pudessem sair em direção aos músculos que produziriam as contrações e os movimentos.

Essa dominância do pensamento mecanicista tem sido, na última década, relativizada por vários pesquisadores da área, bem como tem se buscado melhor entender a progressiva perda de prestígio de teorias estritamente mecanicistas, que, afinal, tanto se viam legitimadas pelo mecanicismo newtoniano quanto eram questionadas porque, também de Newton, foram transferidos para a medicina conceitos que, do mesmo modo que a força da gravidade, seriam indicativos de forças obscuras, mas que, em respeito à observação dos fenômenos, deveriam também ser consideradas reais e, assim, serem melhor discutidas para se alcançar uma melhor compreensão do organismo vivo; é o que veremos em Barthez, quando ele, discute em especial, as simpatias e a sinergia.

Shirley Roe (2003, p. 400), entretanto adverte que usar o termo “Fisiologia Newtoniana” pode ser enganador. Segundo a autora, muitos indivíduos basearam seus trabalhos ou ideias nos conceitos desenvolvidos por Newton, e se auto-intitularam “newtonianos”. No entanto, pelo fato desses indivíduos terem sofrido variadas influências de cultura e tempo, eles desenvolveram pensamentos bem diversos e, portanto, “ser newtoniano”, muitas vezes significava dizer coisas bem diferentes. Roe delineia algumas linhas a serem seguidas e divide de uma forma geral os newtonianos em três correntes.

A autora inicialmente aponta um grupo de fisiologistas que se identificou primeiramente com o Newton do Philosophie Naturalis Principia Mathematica (1687), cujo foco específico consistia na argumentação matemática e nas forças de atração.

Este grupo de fisiologistas reunidos em torno de Archibald Pitcairne (1652-1713) e David Gregory (1659-1708) se baseou na teria atomista da matéria e nas forças de atração de curta distância para explicarem os fenômenos fisiológicos. James Keil (1673-1719), com seu trabalho Account of Animal Secretion, publicado em 1708, foi o ponto alto desse primeiro grupo de newtonianos. Seu trabalho era baseado em forças de atração operando entre nas partículas do sangue animal.

Por volta de 1720, com o falecimento de Keil, este grupo se dissolve. Pitcairne e seus colegas foram vítimas de grandes críticas – estes fisiologistas newtonianos não teriam sido suficientemente newtonianos devido à falta de fundamentação experimental de seus trabalhos

Herman Boerhaave (1668-1738), o renomado professor da Universidade de Leiden, se auto-intitulava com “newtoniano”. A expansão da influência de Boerhaave encaixou-se perfeitamente com a expansão do newtonianismo, ocorrida após a publicação da Opticks, em 1706, sancionando o método experimental. A ênfase de Boerhaave na experiência e na fibra muscular como sendo a estrutura básica do corpo animal influenciou um grupo de fisiologistas da Grã-Bretanha, do qual faziam parte George Cheyne (1671-1743) e Richard Mead (1673-1754). É na ênfase na “experiência” que Roe (2003) identifica a segunda corrente de fisiologistas newtonianos. Segundo esta visão, teria sido através da Opticks, particularmente através das Querries,[4] como também pelo trabalho de Boerhaave em fisiologia - publicado em inglês em 1710 - que uma tradição de observação e experiência surgiu na Grã Bretanha.

Uma terceira corrente do Newtonianismo, também inspirada na Opticks de 1718 é bem exemplificada no último trabalho de Cheyne. Nessa edição, Newton sugere que os fenômenos de atração poderiam ser explicados tendo como base um “espírito sutil”, o éter. Cheyne adicionou uma dimensão espiritual nas suas explicações fisiológicas. Segundo sua visão, um “princípio com atividade e movimentos próprios” necessitava ser adicionado ao corpo mecânico para a função animal.

Essa terceira categoria, se a estendemos um pouco, traz toda a questão de como as forças de atração podem ser adicionadas à matéria para explicar o fenômeno das funções vitais. Seriam estas forças materiais, não-materiais, espirituais? Na visão mecanicista, elas seriam dadas à matéria por Deus. Mas, se o éter é de alguma forma o agente material da atividade de Deus, quão perto da visão materialista estaríamos? Por outro lado, se a atividade na matéria, particularmente nos organismos vivos, é baseada em algo não material, então estamos nos aproximando do animismo?

Sabemos como o próprio Newton debateu-se com estas questões ao tentar explicar as forças da gravidade. 

No continente, os cartesianos permaneceram dominantes por mais tempo e o impacto do newtonianismo nas ciências da vida não era visível até aproximadamente 1745. Em áreas germânicas, Friederich Hoffmann (1660-1734), cujo trabalho Fundamenta medicinae surgiu em 1695, trazia uma base mecanicista em suas explicações; porém isso foi fortemente combatido por seu colega da Universidade de Halle, Georg Ernst Stahl[5] (1660-1734). A invasão newtoniana começou com a fisiologia de Hermann Boerhaave[6](1668-1738), primeiramente com a introdução do método experimental.

A fisiologia de Boerhaave tornou-se conhecida através da edição de suas aulas e ensinamentos feita por seu aluno Albrecht von Haller[7] (1708-1777), o Praelectiones academicae in proprias instituitiones rei medicae (1739). Haller, que se tornou um dos fisiologistas mais importantes do século, também era um forte proponente do método experimental newtoniano. Era, entretanto, cauteloso ao aplicar as forças mecânicas aos processos fisiológicos no corpo animal e considerava o organismo muito mais complexo que uma máquina. Sua intenção era criar um mecanicismo animal, no qual as leis que governam a fisiologia operassem da mesma maneira que as leis físicas, embora não fossem as mesmas leis. Essas forças que operavam no organismo não seriam achadas em nenhum outro lugar.

Haller é melhor conhecido pela “força da irritabilidade”. Ele fez uma serie de experimentos com animais vivos, irritando seus corpos desprovidos de pele com o toque ou com alguma substância química. Seu experimento “provava” que, quando a musculatura se contraía, o fazia pelo princípio da irritabilidade. O newtonianismo de Haller propunha a adoção do método experimental como também a recusa de elaborar a causa da irritabilidade.

A validação feita por Newton de “forças” cujas causas eram desconhecidas tiveram um importante papel na maneira como o newtonianismo emergiu em diferentes correntes da fisiologia neste período. 

Esse mesmo argumento foi usado pelo animista Robert Whytt, quando disse que, da mesma forma como a gravidade era aceita sem explicação, somente pelo fenômeno em si, assim também ele não precisava explicar como o “principio imaterial da sensibilidade” operava. Barthez usa, como veremos adiante, o mesmo argumento para falar do “princípio vital”.

A aplicação das forças newtonianas à fisiologia enfrentou outro problema, que foi o espectro do materialismo. Por que a força “inexplicada” da irritabilidade não poderia ser inerente à matéria e nada mais? Para Haller, a irritabilidade não era imaterial, mas também não era material no sentido de que não era inerente à matéria, pois ele não aceitava os princípios materialistas. Para ele a irritabilidade era uma força mecânica adicionada à matéria por Deus.

O materialista La Mettrie usou o conceito de irritabilidade de Haller para provar que, se músculos recém extirpados do corpo ainda reagiam, não era necessário postular nada mais que a matéria para explicar o fenômeno da vida. 

A adição das forças de atração à matéria postuladas por Newton abriu um enorme campo de discussão entre os naturalistas. Como disse Roe (2003, p.398), a relação entre matéria e atividade foi umas das discussões mais inflamadas do século XVIII, principalmente nas ciências da vida.

 

1.3 A teoria da matéria

 

O projeto da filosofia natural mecanicista, em complementação à incorporação da argumentação matemática para explicar a natureza, adotou uma nova definição da essência da matéria. 

A filosofia natural de Aristóteles, vigente até então, embora diferisse radicalmente das tradições mágicas, herméticas e alquímicas, tinha em comum com elas o entendimento da matéria viva como animada e dotada de qualidades, apetites e desejos. A filosofia natural mecanicista excluiu estas qualidades da essência da matéria. A matéria foi redefinida, desde Descartes, como dura, impenetrável, móvel e inerte. A inércia foi um dos pilares que deu suporte às leis da filosofia natural mecanicista. A matéria possuiria dois princípios, os de extensão e o de movimento. Em relação à extensão, haveria diferenças de forma e tamanho. O movimento é então definido como o resultado de uma força ou ação imposta à matéria por um agente externo. Em repouso ou em movimento, a matéria tende a perpetuar o estado até que uma força externa intervenha. Nas palavras de Leibniz: “O que quer que aconteça com a matéria, se passa de acordo com as leis do movimento advindas da condição anterior da matéria. É isto o que aqueles que dizem que tudo que é corpóreo pode ser explicado mecanicamente sustentam, ou deveriam sustentar” (REILL, 2003 apud RATHER; FRERICH, 1968, p. 24). Então, em todas as análises do movimento, a relação de causa e efeito era diretamente proporcional e, portanto, uma relação fixa e estável poderia ser conhecida. E reproduzida. Era o fim do conhecimento discutível e incerto.

Portanto, a natureza da matéria foi talvez o assunto mais ardentemente discutido na filosofia natural do século XVIII e as posições ontológicas estavam profundamente emaranhadas com a questão epistemológica, metafísica e religiosa (ILLIFE, 2003). As questões foram inicialmente centradas em se a atividade era essencial e inerente à matéria ou se a matéria era essencialmente sem vida e passiva, e esta atividade adicionada à matéria era devida a partículas. A primeira relacionava-se com o fantasma do ateísmo e do materialismo. 

Havia duas versões da primeira possibilidade: a primeira era que a mera organização da matéria proporcionasse o surgimento de propriedades tais como a consciência e que, portanto, não haveria necessidade de se postular a dualidade do espírito e da matéria; a segunda era de que a matéria continha em si uma “força” ou “principio ativo” que originava a impenetrabilidade e outras qualidades.

Seria a matéria inerentemente passiva, com a animação vinda de um empurrão inicial de Deus (à la Descartes), ou por forças mecânicas adicionadas à matéria por Deus, na visão newtoniana?(Roe, 2003).

O conceito de que a matéria era essencialmente sem vida, mas que tinha outras propriedades supra-adicionadas a ela foi a posição publicamente adotada por Newton e muitos outros. O que fez este assunto ser tão significante neste período foi suas implicações com Deus e seu papel no mundo.

Sistemas que baseavam suas premissas nessa visão permitiam uma providencial concepção da atividade de Deus no mundo, mas essa percepção continha em si a dificuldade de que os blocos construídos do universo pareciam gozar de uma existência independente de Deus. 

Um dos perigos da filosofia mecanicista, reconhecido por Newton em sua crítica ao mecanicismo de Descartes, era a possibilidade de que todo um universo mecânico tivesse se formado por acaso, pela interação de matéria e movimento. Então era necessário achar em algum lugar um papel para Deus. Uma resposta seria a de que Deus poderia ser conhecido e entendido ao se estudar as complexidades do universo criado. Esse ponto de vista pode ser observado no florescimento da Teologia Natural do fim do século XVII e inicio do século XVIII. Mas a existência de Deus também poderia ser comprovada ao dizer-se que a matéria é em si mesma puramente passiva, e requerendo a adição de forças ou princípio ativos ou espíritos para produzir o fenômeno do mundo. No meio do século, a questão da atividade da matéria tornou-se a questão central na emergência do materialismo biológico, do vitalismo e nos esforços entre os filósofos mecanicistas de guardar um papel para Deus nos fenômenos da vida. 

Estes pontos foram debatidos na teologia, filosofia e filosofia natural por todo século XVIII.

 

2  O VITALISMO 

 

Toda coisa viva não é uma singularidade, mas uma maioria; mesmo quando nos parece um indivíduo, ela ainda permanece uma reunião de essências vivas independentes.

Goethe (apud REILL, 2005, p. 138)

 

Nem todos os historiadores da filosofia natural do século XVIII reduziram o Iluminismo ao racionalismo universal. Este é especialmente o caso dos que não viram o século XVIII como uma totalidade estática, mas reconheceram um deslocamento intelectual, social de grande importância neste período. Era  até há pouco aceito que, durante a primeira metade do Iluminismo, do fim do século XVII até em torno de 1740, a filosofia natural mecanicista se tornara dominante, ajudada pela disseminação do Newtonianismo. Como vimos no capítulo anterior deste trabalho, o projeto central deste período seria o de explicar todos os fenômenos naturais pelos métodos da matemática e da física.

 Entretanto, segundo Reill (2005, p. 6), por volta da metade do século XVIII, um grupo de intelectuais passou a não aceitar a necessidade da coerência formal matemática nas explicações para o mundo natural e instaurou-se um ceticismo crítico que revalorizou a contingência sobre a coerência. 

Para muitos pensadores da última metade do século XVIII, o mecanicismo estava associado à monarquia opressiva de Luis XIV. O termo “máquina” e “mecanismo” passaram a ser associados metaforicamente com despotismo e morte e se tornaram sinônimos de uma uniformidade confinada. Kant (apud REILL, 2003, p. 29) em seu ensaio O que é o Iluminismo? afirma que a Aufklärung clama por um governo no qual a pessoa “seja mais do que uma máquina”; em Crítica do Juízo Kant se refere “ao estado monárquico” como “mera máquina”, se for governado “por uma vontade única e absoluta”. Ao contrário, um estado monárquico governado “segundo as leis do povo” seria designado um “corpo animado”. 

A insatisfação com o mundo social e político no qual a filosofia mecanicista prosperou, foi demonstrada pela desconfiança em relação a que o raciocínio abstrato e hipotético pudesse construir um quadro coerente da realidade. Para os pensadores do Iluminismo tardio, a filosofia abstrata parecia incapaz de dar conta da variedade da natureza. Buffon (1707-1788) fez uma crítica à introdução dos princípios matemáticos ao âmago da filosofia natural, distinguindo entre as verdades abstratas e àquelas relativas ao corpo. As primeiras eram produzidas pela imaginação, enquanto que as segundas eram reais, existiam na natureza e não dependiam de nós. A matemática pertencia à primeira categoria, fundada em princípios da lógica, aceitos arbitrariamente. ( Reill, 2003, p.30).

Encontramos aqui uma inversão de prioridades intelectuais. Para os pensadores da filosofia natural mecanicista do final do século XVII, e início do século XVIII, a “história” (o conhecimento dos fatos), seria a forma menos valorizada de conhecimento, pois carecia de uma demonstração matemática. A história poderia no máximo fornecer o material que posteriormente seria remodelado pelo poder universal do raciocínio matemático. Porém, para pensadores como Buffon e Hume, o oposto é que era verdade: o contingente era real, e o resto “era ilusão e excesso de soberba humana elevada à categoria de ciência”. (Reill 2003, p. 31). Paralelamente à valorização da contingência sobre a coerência, havia o reconhecimento dos limites do poder da razão humana em virtude da limitação de nossos sentidos.

A “variedade” e a “similaridade” deslocaram a “uniformidade” e a “identidade”. A natureza não só era complexa, mas também estava sempre em transformação e movimento.

 Reill (2005) aponta que poderíamos discernir dois principais movimentos surgidos na segunda metade do século XVIII que estariam se opondo ao reducionismo racionalista. O primeiro, do qual faziam parte Diderot, Laplace e Condorcet, foi chamado de neomecanicismo. Este grupo embora tenha limitado o papel da matemática, eles mantiveram a definição mecanicista da matéria como inerte. As ideias deste grupo não fazem parte do escopo deste trabalho.

A segunda resposta ao reducionismo matemático veio de um grupo de livres pensadores, mais tarde denominado de “vitalistas”, grupo este cujos interesses estavam centrados na história natural, química, medicina, e nas ciências da vida. Ao contrário dos neomecanicistas, eles estavam interessados em reformular o conceito de matéria, força e conexão.

A discordância básica dos vitalistas em relação ao mecanicismo foi em relação à matéria, que estes consideraram inerte, e “cuja separação entre mente e corpo, ou alma e corpo, apenas Deus poderia curar”. (REILL, 2005, p. 7). Segundo Reill, os vitalistas da segunda metade do século XVIII, que ele denominou de “vitalistas iluministas”, procuraram dissolver a dicotomia entre matéria e mente, ou corpo e alma, propondo a existência de uma matéria animada por forças ou poderes que se auto-ativavam, e que era auto-organizada, em um ciclo de relações e interconexões, que foi denominado de princípio ou força vital.

Gostaria de chamar a atenção para o termo “Vitalismo Iluminista” criado por Reill, e seu especial significado. “Vitalismo” foi um neologismo criado com a intenção de distinguir este movimento e seus conceitos, do mecanicismo e do animismo. O “vitalismo” é classicamente descrito como uma tentativa de mediação entre o animismo e o mecanicismo. Reill defende que o vitalismo iluminista pode ter sido transicional no sentido histórico mais formal, ou seja, ter compartilhado ideias as quais ele criticava e ao mesmo tempo inevitavelmente ter contribuído para o que veio depois. Ele afirma ainda que adicionou o termo “Iluminismo” para destacar que o vitalismo que ele discute foi único, e pertence àquele período, e diferenciá-lo de movimentos posteriores que se apropriaram deste nome, e que eram movimentos conservadores. Segundo Reill (2005, p. 12), o “Vitalismo Iluminista” não era um movimento conservador, embora alguns de seus proponentes pudessem sê-lo. Ele empregou imagens de consenso e cooperação, falou de forças que agiam em conjunto e sua imagem de organização excluiu uma única direção ou governo. Portanto, o vitalismo iluminista continha tons liberais e algumas vezes revolucionários e não foi à toa que foi cortejado por pensadores como d’Alembert e Diderot.

 Voltando aos conceitos do vitalismo, os vitalistas formularam seu principal conceito, o “princípio vital”, que não poderia ser visto diretamente, nem medido, pois era uma força oculta, no sentido clássico do termo. Ele poderia, na melhor das hipóteses, ser anunciado por sinais. A semiologia e observação se tornaram, ao invés do racionalismo, o método de decifrar os segredos da natureza. O problema epistemológico básico era entender o significado destes sinais. Reill afirma que os vitalistas iluministas utilizaram como método, a análise comparativa e o raciocínio analógico para dar conta deste problema. O raciocínio analógico substituiu a análise matemática para explicar os fenômenos da natureza segundo a visão vitalista. (Reill, 2005, p. 8).

O termo “vitalista” é reservado a um grupo de pensadores médicos, ou ligados às ciências da vida, que estavam em geral associados às escolas médicas de Montpellier e de Edinburgh. O termo vitalismo foi criado por Charles Louis Dumas[8] em seu Principes de physiologie (1800-1803). Ele anunciava uma revolução na fisiologia, iniciada na França na metade do século XVIII, que havia se estendido a outros países da Europa como Escócia, Alemanha e Inglaterra entre outros. Esta revolução rejeitava o mecanicismo, mas questionava também o animismo, a alternativa ao mecanicismo do início do século. Segundo Dumas, o núcleo desta revolução consistia na necessidade de mediação entre o erro metafísico do “materialismo” e do “espiritualismo”. Uma terceira classe de fisiologistas, que se colocava no meio destes dois outros grupos, e não derivava as manifestações da vida nem da alma nem da matéria, mas de uma “capacidade”, ele denominou de vitalistas. Esta capacidade não era determinada pelo corpo nem era animada pela alma ou pelos poderes racionais. Segundo ainda Dumas, esta capacidade se colocava entre a alma e o corpo, propondo assim uma nova teoria da matéria ativada por forças ou principio vitais. Fazia parte também desta revolução descrita por Dumas, uma distinção, ou melhor, uma separação entre as ciências da vida, a física e a química - onde estas seriam menos importantes, e as ciências da vida o núcleo para formar-se o entendimento - via raciocínio analógico - sobre a natureza viva. (Reill, 2005, p. 120).

Por volta da metade do século XVIII, os cientistas da vida que tinham por objetivo desacreditar o mecanicismo, reabilitaram a animismo, minimizando seus componentes espiritualistas, e herméticos.

As ideias de Stahl serviram de inspiração para o vitalismo surgido na escola médica de Edinburgh, principalmente pela figura de Robert Whytt; também na escola de Montpellier nessa mesma época, as ideias de Stahl foram introduzidas por Sauvages, e a seguir, desenvolvidas por Teophille Bordeu e, posteriormente, por Paul- Joseph Barthez.

 O objetivo deste capítulo será o de apresentar o vitalismo de Montpellier. Um estudo do vitalismo surgido em outros países, bem como a relação entre estes “vitalismos”, que certamente têm semelhanças e diferenças, ficará para um trabalho posterior.

 

2.1 A ciência do homem

 

Segundo afirma Williams (1994, p. 20), a historiografia negligenciou os vitalistas de Montpellier. O papel singular que eles tiveram no desenvolvimento das ciências biomédicas do século XVIII é pouco conhecido, mesmo para os estudiosos. Segundo Williams esta negligência se deve a dois padrões repetidos por historiadores dentro e fora da França sobre a história da ciência francesa: o “pariscentrismo”, ou seja, o realçar do desenvolvimento de Paris às expensas de outras cidades da França, e uma segunda questão mais problemática: que seria a de selecionar como objeto de estudo, pessoas, tradições e escolas consideradas antepassados da ciência moderna. Segundo esta autora, Montpellier desapareceu do panorama histórico principalmente em consequência de que, por muito tempo, historiadores da medicina na França concentraram suas expectativas na tão falada escola clínica de Paris, ignorando outras tradições médicas. Por sua vez, o julgamento de historiadores contemporâneos sobre o passado se apoiou nos textos clássicos do século XIX e inicio do século XX, que, embora valiosos, estavam embebidos em ideologias daquele período. 

Por volta de 1850, um conjunto de “vitoriosos” destas batalhas estava começando a aparecer, e a historia da medicina estava incorporando dicotomias que identificavam perdedores de ganhadores. Williams (1994, p. 21) expõe uma tabela onde os vitoriosos seriam a medicina de Paris, o método positivista, a estatística, a vivisseção, o uso do microscópio, o reducionismo, a autopsia, o antivitalismo. Ainda nesta tabela, uma segunda coluna, em contraponto à primeira, onde os “perdedores” seriam as ideias médicas de Montpellier, o método filosófico, o discurso, a antivivisecção, a visão ordinária, o holismo, a observação do ser vivo, e o vitalismo. 

No inicio do século XIX, partidários da medicina de Paris usaram conhecimento histórico como parte de um esforço extremo de enfraquecer a medicina filosófica em geral e o vitalismo em particular. E esta perspectiva continuou a formatar a história da medicina por muito tempo. Historiadores da medicina do século XIX concordavam com a grandeza de Montpellier “para seu tempo”, recontavam como ela havia sido superada pela medicina clínica de Paris e chamavam os simpatizantes da medicina de Montpellier de conservadores e reacionários. Estudos históricos sobre os conceitos e as doutrinas de Montpellier não se faziam necessários, visto que eles, supostamente se encontravam fora do movimento avançado da medicina. Nesta literatura, mesmo os grandes de Montpellier do século XVIII – Théophile Bordeu e Paul Joseph Barthez- eram ritualisticamente saudados, ao invés de cuidadosamente estudados, tendo como consequência o esquecimento da complexa tessitura do pensamento de Montpellier.

A medicina de Montpellier, segundo Williams, foi origem de uma longa e importante tradição da medicina francesa, que ficou conhecida como a “ciência do homem”. O termo “ciência do homem” foi pela primeira vez usada como titulo de um tratado médico escrito por Paul-Joseph Barthez em 1778, Nouveuax Éléments de la Science de l’Homme, embora a ideia de ciência do homem já existisse em Montpellier algum tempo antes.

Esta autora compartilha da opinião mais disseminada entre os historiadores da medicina de que, na metade do século XVIII, a concepção mecanicista do corpo, que finalmente resultou na medicina experimental e na sua concomitante instrumentalidade tecnológica, era dominante por toda a Europa. Os tratados mais lidos eram os livros dos teóricos do mecanicismo, especialmente do professor e médico holandês da Universidade de Leiden, Hermann Boerhaave.

A medicina do século XVIII, a despeito de sua incipiente modernidade, diferia profundamente da sua contraparte moderna. Como ocupação, a medicina era altamente estratificada, indo de uma minúscula elite de doutores treinada nas antigas faculdades, até variados práticos populares (charlatões, parteiras e curadores itinerantes). 

Havia ainda uma clara distinção entre doutores e cirurgiões, que era reforçada por distintas corporações. Os doutores (médicos), que obtinham um ou mais diplomas médicos oficiais, e então praticavam a medicina, e os cirurgiões, que ganhavam a vida não apenas realizando suas próprias cirurgias, mas também praticando variadas terapias – sangria, ventosas, purgação, banhos – prescritas pelos doutores-médicos. Os doutores pertenciam a corporações formadas por suas faculdades ou a colégios locais que concediam o direito de praticar a medicina naquela localidade. Os cirurgiões eram ligados as communautés locais. Estas organizações eram completamente separadas das corporações dos médicos até a Revolução, o que traduzia outra realidade social da medicina do século XVIII. Até a Revolução, o treinamento, o certificado ou diploma, a clientela, hábitos de trabalho, os rendimentos, e a hierarquia social entre doutores e cirurgiões eram muito diferentes. Uma única exceção a esta regra foi a emergência de uma elite de cirurgiões nas grandes capitais, que com o tempo foi se insurgindo contra a exclusividade dos doutores. 

Esta descrição das características estruturais da medicina do século XVIII, segundo Williams (1994, p. 23) é importante porque indica que os médicos da época, que pertenciam à elite médica, percebiam a medicina como um corpo de teoria e a si mesmos como pensadores especulativos, no mesmo estilo dos philosophes. Os escritores médicos com frequência afirmavam sua autoridade em disciplinas sociais e cosmológicas que para nós atualmente nenhuma relação tem com a medicina.

A tendência dos médicos do século XVIII de, além de considerar questões médicas, de olhar amplamente para as questões filosóficas, foi mais tarde repudiada pela medicina positivista dos círculos médicos de Paris, que ridicularizavam o braço especulativo da medicina, com o qual eles identificavam particularmente a Universidade de Montpellier.

Entretanto, em muitos sentidos, a denominação de “medicina filosófica” realmente serve a Montpellier. Os médicos de Montpellier definiam objetivos para sua medicina que iam além da mera terapêutica e que faziam da medicina uma ciência que investigava o grande leque de circunstâncias que determinavam a saúde e a doença. Os médicos de Montpellier eram filosóficos até aonde a palavra significava uma admissão do espírito e do método científico em oposição à chamada medicina repetitiva ou padronizada; medicina esta percebida, por muitos médicos, como submissa ao peso da autoridade e das antigas tradições questionáveis. 

Os doutores de Montpellier esforçaram-se para transformar a medicina numa ciência do homem concebida em sentido amplo, mas embasada principalmente no contexto social e científico contemporâneo.

A “ciência medica do homem” não pode ser precisamente definida, mas ela possui alguns pontos centrais de referências (Williams, 1994, p.8): O primeiro deles é ela ser holística, ou seja, tanto em relação à concepção do ser humano como um ser integral que funciona como um todo interdependente, bem como na visão da medicina como ciência ou arte que deve, de alguma forma, englobar uma miríade de fenômenos interdependentes da experiência humana. Vista sob este prisma, a medicina não é limitada a um grupo separado de fenômenos físicos, mas, ao contrário, seria ampla e de grande alcance em seu campo de ação. 

O segundo ponto que compõe a ciência do homem se origina no primeiro: a ciência do homem postula uma relação íntima (rapports) entre domínios distintos da experiência humana, que no século XVIII foi habitualmente entendida segundo um esquema triplo - composto do físico, mental e do passional - e que, mais tarde, foi reduzida ao “o físico e o moral”. A ciência do homem não reduz o psíquico ao físico. A maioria dos médicos que fez parte desta tradição aceitava certa distinção entre mente e corpo e entre ação consciente e inconsciente, mas eles ensinavam que estes campos de existência e experiência eram, entretanto, fortemente interdependentes. Rapport significava, portanto, o “não controle” e a “não determinação” da mente pelo corpo ou vice-versa, mas associação, inter-relação, reciprocidade. 

O terceiro ponto central supunha que a ciência do homem empurrava a medicina para a sociedade por sua própria lógica interna, e não por intenção ideológica ou política. Em suas primeiras aparições, a ciência do homem deveu esta construção social da medicina principalmente a certa leitura do hipocratismo, que entendia a saúde como dependente de práticas sociais e milieux. Mais tarde, estes laços com o hipocratismo foram cortados, mas a medicina antropológica continuou a insistir na importância da saúde dos hábitos, ocupação, clima e influências similares.

Finalmente, a ciência do homem privilegiava a questão do discernimento dos “tipos” humanos entre a grande variedade de detalhes clínicos e sociais, colhidos no curso da investigação médica. Estes tipos eram geralmente articulados segundo a variada distribuição de energia vital nos indivíduos, e, mais especificamente. segundo seu temperamento, constituição, idade, sexo, clima, doença e raça. Esta disposição de “tipologizar” originava-se no vitalismo médico, do qual, Williams (1994, p. 9) insiste que a ciência do homem obteve seus primeiros impulsos. O vitalismo insistia por definição, na variabilidade e diversidade do fenômeno humano. Rejeitando as constantes mecânicas, os vitalistas procuraram então por configurações, regularidades, e generalidades que lhes permitiriam planejar explicações patológicas terapêuticas e fisiológicas coerentes. Assim, o discernimento de tipos, mostrando regularidade diversa daquela pertencente ao universo físico, foi uma das especiais contribuições da ciência do homem para o empreendimento científico, no século XVIII.

Pelos idos de 1820, já no inicio do século XIX, a ciência experimental - baseada em experimentos laboratoriais de François Magendie e outros - deixou pouco espaço para colocações médico-sociais mais amplas. Depois de 1850, a expressão “ciência do homem” já não era mais associada a uma concepção de medicina, embora algumas décadas antes, a alternância dos termos medicina, arte de curar e ciência do homem, fosse comum no vocabulário médico francês (Williams, 1994, p. 10). 

 

2.2 A Universidade de Montpellier

 

A escola médica de Montpellier, situada na cidade de Montpellier, região do Languedoc, Sul da França, foi uma das primeiras da Europa (seus primeiros estatutos formais datam de 1220), e, a partir da Renascença, um centro de treinamento médico altamente considerado. Sua reputação deveu-se em parte ao fato de que as lições de medicina eram integradas com o estudo de outras ciências, o que atraía estudantes da Europa ocidental e oriental. O Jardim des Plantes, fundado em 1593, foi um dos primeiros da França, e desde então as aulas de botânica tornaram-se ininterruptas.

Durante a Renascença a faculdade de Montpellier parece ter se privilegiado de um forte intercâmbio cultural com as faculdades do norte da Itália. Os estudantes atravessavam os Alpes e traziam as novidades médicas, teóricas e práticas, das grandes universidades do norte da Itália. É possível que este contato tenha encorajado a fundação do primeiro anfiteatro de anatomia em 1566. Desde então, as dissecções foram praticadas em Montpellier, principalmente no semestre do inverno. A prática da dissecção ajudou a criar nesta universidade uma celebrada tradição em anatomia, que por sua vez deu origem a uma precoce campanha em Montpellier para a união da medicina com a cirurgia.

O mestre cirurgião de Montpellier, François de La Peyronie, foi o Primeiro Cirurgião de Louis XV. Montpellier foi a única escola médica na França que conciliava um diploma misto de médico e cirurgião, conhecido informalmente como D.M.C. (docteur, médicin, chirurgien).

No inicio do século XVIII, já existia havia algum tempo uma relação especial entre a escola de medicina de Montpellier e a coroa. Por todo século XVII, a coroa designou médicos famosos de Montpellier para posições de prestígio na corte, o que sem dúvida contribuiu para o ressentimento que a faculdade de Paris nutria contra Montpellier no século XVIII (Williams, 1994, p. 27).

Nas primeiras décadas do século XVIII, por estima e reconhecimento, por concessão da coroa, Montpellier passou a ter sua própria academia de ciências (Société Royale des Sciences de Montpellier), fundada em 1706, comparável à academia de ciências de Paris em estrutura, organização e planos de publicação. A sociedade de Montpellier foi originalmente dividida em cinco classes: matemática, astronomia, química, botânica e ciências médicas.

Professores da Universidade de Montpellier participavam em larga escala das atividades da sociedade real de ciências, e havia em geral uma estreita relação entre medicina e outras ciências, o que levou a que os médicos incorporassem os métodos da academia de experimentação, observação, e cálculo. Embora houvesse desde o inicio do século XVIII o reconhecimento da co-relação entre todas as ciências, muitos dos professores da universidade defendiam a autonomia de sua disciplina.

No inicio do século XVIII, não havia uma unanimidade de opiniões médicas ou filosóficas na Universidade de Montpellier. Além daqueles que utilizavam a medicina prática da época, a medicina galênica, havia também os que fossem adeptos de doutrinas mais recentes. Segundo Martin (1990, p. 112), a reforma na medicina proposta por Francis Bacon (1561-1626), e de maneiras distintas, por Thomas Sydenhan (1624-1689) e Giorgio Baglivi (1668-1707), tinha seus defensores em Montpellier. Também eram influências vigentes nesta universidade, segundo este autor, o cartesianismo e, na última voga, a medicina de inspiração newtoniana, a medicina matemática de Archibald Pitcairne e James Keil. 

Williams (1994, p. 28) aponta que a Universidade de Montpellier, no século XVII, esteve fortemente identificada com as ideias de Paracelsus, e que, assim, no início do século XVIII, a influência da doutrina iatroquímica ainda era presente. 

A responsabilidade da introdução de ideias vitalistas em Montpellier é usualmente atribuída ao médico, botânico e nosologista François Boissier de Sauvages (1706-1767), médico desta universidade, por volta dos anos de 1730. Segundo Williams (1994), Sauvages teria introduzido em seus cursos uma versão dos ensinamentos de Georg Stahl (1660-1734). 

Stahl, professor e médico da Universidade de Halle (Alemanha), médico e químico alemão, elaborou uma doutrina médica (o animismo) que se opunha a todos os ensinamentos que baseavam a medicina nos princípios da física ou da química. Stahl propôs uma nova doutrina que tinha principalmente como alvo os ensinamentos mecanicistas de Boerhaave (1668-1738)[9], e propunha uma radical distinção entre o que possuía vida e o que não a possuía. Toda a matéria viva era caracterizada por um propósito e dirigida por um princípio que ele denominou de “anima”. A anima era responsável pelas atividades conscientes e voluntárias, bem como pelos processos involuntários. A alma comandaria inclusive funções fisiológicas específicas, como a salivação, que ocorriam quando a alma julgava necessário (Williams, 1994, p.3). Em alguns casos, Stahl utilizava explicações mecanicistas, guardando o cuidado de explicar que anterior ao movimento estava a anima, que era a verdadeira causa e guia de toda e qualquer atividade ou função do corpo humano. Não é parte do objetivo deste estudo a doutrina de Stahl, chamada animismo, presente no início do século XVIII em alguns países da Europa, além da França.[10]

Martin (1990) em seu estudo sobre Sauvages, afirma que este era um severo crítico do mecanicismo cartesiano, e um entusiasta das ideias de Francis Bacon e Newton. Martin questiona o rótulo usual dado à Sauvages de vitalista, pois seu tratado de 1740, On the cause of the Vital Motion, teria uma visão newtoniana. Ao fazermos uma breve revisão da obra de Sauvages, vemos que ele realmente sofreu influências diversas em sua careira, tendo tido também muito prestígio como nosologista. Entretanto, na opinião de Williams (2003), Sauvages foi a principal origem da transmutação teórica que acabou por produzir o maduro vitalismo de Montpellier. 

As divergências referentes às influências sofridas e absorvidas por Sauvages, e se ele seria ou não um vitalista, reflete a complexidade do trabalho de Sauvages. Se foi através das ideias de Sauvages, como afirma Williams, ou não, que as ideias de Stahl foram introduzidas e disseminadas em Montpellier – fica a questão. O motivo pelo qual as ideias de Stahl foram tão bem recebidas em Montpellier ainda carece de pesquisas mais aprofundadas. Porém as ideias de Stahl se tornaram um assunto de criticas e debates entre 1730-1740. Bordeu (BORDEU; GLANDES, p. 204, apud WILLIAMS, 2003, p. 157) afirma que Stahl foi introduzido em Montpellier no ano de 1737 e que por seis ou sete anos houve muita discussão a respeito de seu sistema. Finalmente, ao chegar ao meio do século XVIII, Montpellier já possuía sua própria doutrina a respeito da singularidade da vida.

 

2.3 Os vitalistas em Montpellier

 

O vitalismo de Montpellier foi desenvolvido inicialmente por Théophile de Bordeu (1722-1776) e alcançou sua plena expressão com as ideias de Paul-Joseph Barthez (1734-1806). 

Bordeu formou-se em Montpellier dez anos antes que Barthez. Seu primeiro artigo, ainda estudante (Montpellier, 1742), foi a Dissertatio physiologica de Sensu Generice considerato, onde discutiu sobre a natureza da sensibilidade e do movimento. Este trabalho indicou a extensão de sua leitura das obras de Stahl e van Helmont, e anunciou o ataque ao mecanicismo, desenvolvido ao máximo em sua obra mais famosa, Recherches anatomique sur la position de glandes et sur leur action (1752). Neste trabalho, Bordeu tratou do funcionamento das glândulas, combatendo a explicação mecanicista, quase universalmente aceita, de que as glândulas funcionavam por compressão. Ele começou com experimentos com a glândula parótida e provou que ela não funcionava através da pressão causada pelo ato de mastigar. Em seguida, passou para estudos e experiência com outras glândulas como as salivares, até chegar à hipófise, ao timo, ao pâncreas, e finalizando a discussão da excreção do sêmen e do leite, chegando até mesmo a propor um modelo de explicação para todas as outras secreções. Foi ao explicar a excreção e a secreção como processos similares, que Bordeu elaborou sua doutrina sobre a singularidade da vida. Para ele o processo de funcionamento das glândulas consistia em uma convulsão ou espasmos, em consequência da ação nervosa. Embora não tenha esclarecido como ou por que os nervos da região da glândula eram colocados em ação, ele notou o papel das paixões na salivação, advinda do desejo de comida, como também percebeu a admiração envolvida nos “atos do amor”. A respeito do que exatamente acontecia com os nervos, ou exatamente como isto funcionava, ele atestou que provavelmente não chegaríamos a sabê-lo, mas que bastava que a experiência demonstrasse o fato. O máximo que Bordeu pôde sugerir foi que a ação do nervo era excitada por uma força, da qual ele não sabia a proveniência, mas da qual nem por isso, sua existência “era menos real” (Williams, 1994, p.34). Além do Glands, Bordeu escreveu outro livro intitulado Recherches sur les tissu muqueux (1767). É também bem conhecido o conjunto de três diálogos filosóficos de Diderot, Rève d’Alembert (1769), do qual Bordeu[11] é um dos personagens principais.

Além de Bordeu e Barthez, ambos de Montpellier, Williams (1994, p. 31) cita outros vitalistas da mesma universidade, menos famosos, mas que fizeram parte deste movimento, como Louis de Lacaze (1703-65), primo de Bordeu, com quem Bordeu trabalhou, Gabriel Venel (1723-1775), amigo de Bordeu, Henri Fouquet (1727-1803-9), Charles-Louis Dumas e Victor de Sèze (1754-1830). Foge à intenção deste trabalho abordar as ideias, bem como as diferenças entre estes representantes do movimento vitalista de Montpellier do século XVIII. Entre eles, sem dúvida, havia importantes diferenças de opinião. Porém, olhando de forma mais abrangente para o quadro da medicina do século XVIII, Montpellier possui uma unidade a despeito de sua diversidade, que se constitui fundamentalmente no conceito de uma força vital não corpórea e não espiritual, empiricamente deduzida, que constituiu a linha essencial de distinção entre a matéria viva e a matéria inerte.

Uma observação de Victor de Sèze, outro representante da medicina vitalista de Montpellier, resume bem este ponto de vista:

 

 

Por que não deveríamos concordar que o corpo vivo possua uma física própria? As faculdades que percebemos nestes corpos, e que percebemos apenas neles, indicam que eles formam uma classe à parte, que possui suas próprias leis de ação, suas leis de movimento independentes daquelas que dirigem outros corpos. (SÈZE, 1786).

 

 

Portanto, se os corpos não obedecem às mesmas leis ou não exibem os mesmos fenômenos que os corpos inertes, não pode haver justificativa ou valor em submeter a medicina às ciências físico-químicas.

Foi através de uma extensa elaboração do conceito de singularidade da vida que Montpellier iria atingir sua grande reputação.

 

2.4 O vitalismo na Encyclopédie

 

Não existem dúvidas sobre a colaboração de Barthez, Bordeu e Venel, na forma de artigos, para a l’Encyclopédie de Denis Diderot (1713-1784) e Jean Le Rond d’Alembert (1717-1783). 

Em 1753, foi publicado no volume 4 da l’Encyclopédie, o único e famoso artigo de Bordeu - “Crise”, considerado unanimemente por historiadores da medicina, uma obra-prima das publicações médicas no Iluminismo. O artigo tratava da validade dos “dias críticos”, nos quais, de acordo com a medicina clássica de Hipocrates e Galeno, a doença atingia sua crise e caminhava para a resolução. Bordeu fez deste tópico um veículo para o ataque às tradições médicas e para uma meditação sobre o caráter fundamental da doença. Embora Bordeu reverenciasse Hipocrates, Bordeu discordou de Hipócrates quanto aos “dias críticos”, lamentando um padrão lamentável na historia da medicina, de subordinar suas próprias observações às explicações oferecidas pelos poderosos sistemas médicos. Bordeu se opôs à contagem dos dias de uma enfermidade, e basear seu prognóstico em um exercício numérico, o que também deixava evidente sua hostilidade à visão de que estes fenômenos exibissem uma regularidade matemática. Bordeu afirma então que a natureza tem suas leis, mas que não se pode classificá-las nem contá-las. (Williams, 2003, p.161).

O artigo Chymie, de Gabriel Venel, publicado em 1753, no volume 3 da Encyclopédie, apresenta o contexto teórico da química vitalista e aborda a relação que os vitalistas consideram adequada entre medicina e as ciências auxiliares. Venel afirma a superioridade inerente da química sobre a física no que concerne aos assuntos do “reino terrestre” (em oposição ao “reino celeste”). Ao estabelecer esta distinção, Venel desenvolve temas que foram constantes no discurso vitalista, como a absoluta distinção entre o “vivo” e o “não-vivo”, entre o orgânico e o inerte, o papel fundamental ocupado nos fenômenos químicos pelas forças inerentes, mas indefiníveis, e a inutilidade de tentar explicar os fenômenos químicos com imagens mecânicas, ou procurar as causas destes fenômenos em ações mecânicas. 

Em relação à colaboração de Barthez para a L’Encyclpoedie, entretanto, ainda existem algumas dúvidas e certa confusão sobre a lista de artigos por ele escritos. Podemos considerar como certa, segundo Di Trocchio (1981), a amizade entre Barthez e D’Alembert revelada em uma carta que esse escreve para Frederico da Prússia, recomendando Barthez como membro da Academia de Berlim, “por seus talentos e trabalhos”[12]. Segundo este mesmo autor, Barthez deveu parte de sua formação filosófica a D’Alembert, como Barthez mesmo reconhece no Discours Préliminaires de seu Nouveaux Éléments. Existe uma divergência entre alguns pesquisadores em relação a quais teriam sido as obras de Barthez escritas para a l’Encyclopédie. É sabido que Barthez assinava seus escritos para a l’Encyclopédie pela inicial “g”. Segundo Di Trocchio os artigos assinados por “g” são dezoito, repartidos entre os tomos VI e VII, e eles foram publicados entre os anos de 1755 e 1756, imediatamente antes de Barthez partir para a Normandia. 

O tomo VI, publicado em 1756, continha os artigos: Evanouissement; Expansion; Externe; Extenseur; Extispice; Face; Fascination; Faune; Fausses-côtes; Faux; Femme; Femur; Fessier; Fibre; Fibrille; Flechisseur. 

O tomo VII foi publicado em novembro de 1757, e continha os artigos: Follicule e Force des animaux. 

Na lista dada por Dulieu, dos artigos escritos por Barthez para a Encyclopédie, eles são apenas dez.

Alguns eram sobre anatomia, como Expansion e Faux e não continham de acordo com Di Trocchio, maior interesse. O artigo Fascination era uma condenação explícita à superstição pagã e católica, que pode ter sido responsável por sua reputação de ateu. (Di Trocchio, 1981, p. 131). Di Trocchio comenta também a singularidade de ter sido dado a Barthez um artigo sobre as mulheres (Femme), ele que era um homem que pouco ou nada conhecia do assunto, por ter morrido celibatário, ter conhecido apenas duas mulheres, sua mãe e sua governanta e nunca ter frequentado os salons. 

Ainda que alguns de seus artigos não tenham sido julgados excelentes, como o artigo único de Bordeu, as relações de Barthez com o grupo de enciclopedistas teve um significado que vai além de sua colaboração e de seus artigos. Segundo Di Trocchio, (1981, p. 135), Barthez retirou destas relações exatamente o que faltava ao movimento vitalista a fim de poder se afirmar como cientificamente viável - um método que a comunidade cientifica do século XVIII reconhecesse como de caráter rigoroso Interessante ressaltar que Di Trocchio afirma ser este o método newtoniano, filtrado pela ótica de d’Alembert. Barthez teria denominado o método de empirisme raisonné, que se torna a característica constante utilizada em suas aproximações teóricas para os problemas das ciências da vida. Este método consistia segundo Di Trocchio, na recusa das hipóteses e da metafísica, na sua exaltação ao “fato”, na sua total adesão à filosofia experimental, ao uso do método duplo de análise e síntese evocado por Newton no Principia.

A finalização da colaboração de Barthez à Encyclopédie terminou em 1758, o mesmo ano da saída de d’Alembert, devido à polêmica provocada pelo artigo Genéve, seguida da revogação do privilégio real em março de 1759. Barthez sempre evitou disputas diretas com o poder político. Sua ambição, ao contrário, sempre o fez cultivar amizades de ministros e homens próximos do rei. Na mesma época da extinção da Encyclopédie, ele foi convidado por Malesherbes para ser o censor real e dividir com Lavirotte o cargo de redator adjunto do Jounal des Savants. Em 1789, Barthez publicou um artigo em favor das prerrogativas que deveria ter a nobreza na Constituição e nos Estados Gerais da França. (Di Trocchio, 1981, p. 135).

 

2.5 Quem foi Barthez

 

Paul-Joseph Barthez, filho de um engenheiro da região do Languedoc, nasceu em Montpellier, capital desta região, em 11 de dezembro de 1734. Passou sua infância em Narbonne e estudou também em Toulouse e por próprio desejo, teria entrado na vida eclesiástica. Tendo sido dissuadido por seu pai, entrou para a Universidade de medicina de Montpellier em 1750. Obteve seu grau em 1753 e foi para Paris em 1754, onde, ajudado por Camille Falconet (velho médico de Montpellier e nesta época, médicin consultant de Louis XV), foi rapidamente introduzido no meio cultural mais qualificado da capital. Falconet possuía uma biblioteca de 45.000 volumes que Barthez pode usar livremente. Esta relação permitiu a Barthez conhecer “toda a Paris da época”, e particularmente D’Alembert, de quem veio a ser amigo, e posteriormente, médico.

Em 1756, utilizando de seus conhecimentos pessoais em Paris, conseguiu uma nomeação como Médicin Ordinaire des Hôpitaux Militaires, tendo sido logo em seguida enviado para a Normandia (Cotentin), onde havia uma epidemia. Sua passagem pela Normandia como médico das forças armadas foi breve, mas lhe rendeu um artigo sobre a epidemia. Em 1757 Barthez foi transferido, na mesma função, para Vestfália, em virtude de uma febre que havia se disseminado no acampamento. 

Ele mesmo caiu doente desta febre e teve que retornar à Paris, tendo esta afecção posto fim à sua carreira militar.[13] Sua experiência e atuação nesta epidemia lhe rendeu mais um artigo.[14]

Quando voltou de Vesfália, Barthez saiu vencedor par uma cadeira de anatomia na Universidade de Montpellier e voltou para o Languedoc, onde viveu por 20 anos como professor e também como médico da nobreza local.

Entre o final da década de 1760 e a década seguinte, quando Bordeu e seus discípulos se dedicavam a tratar da saúde da alta sociedade parisiense, Barthez morava e trabalhava em Montpellier, absorvido nas batalhas institucionais da universidade e nos trabalhos de pesquisas que iriam culminar na síntese do pensamento vitalista francês do Iluminismo, o Nouveaux Éléments de la Science de l’Homme[15], publicado em 1778.

Em1781, Barthez foi convidado a voltar a Paris para ser o médico do duque de Orléans. Em sua segunda estadia prolongada em Paris, Barthez não se ocupou apenas da prática médica, mas também esteve envolvido novamente como colaborador do Journal des Sçavans.

Assim que a Revolução sacudiu Paris em 1789, Barthez retorna para o sul da França, em Carcassonne, onde viveu por alguns anos. Já com a saúde deteriorada, volta à Paris em 1806 para o lançamento da segunda edição do Nouveaux Éléments de la Science de l’Homme, onde vem a falecer.

Louis Dulieu (1971) faz uma breve descrição de Barthez. Barthez nunca se casou, e por toda sua vida, teve uma única governanta, que morreu em 1804, cuja morte ele teria chorado amargamente. Era de baixa estatura e forte. Colérico e vingativo, ciumento de seus escritos, ambicioso e ávido de honras, possuía memória prodigiosa, uma enorme capacidade de trabalho, e conhecia várias línguas, além do grego e do latim. 

 

2.6 Barthez: o professor em Montpellier

 

Nos anos que Barthez atuou como professor da faculdade de Montpellier, ele desenvolveu um série de cursos em fisiologia, patologia e terapêutica. Um destes cursos sobreviveu em um longo manuscrito e foi produzido nos anos que precederam a publicação do Nouveuax Éléments. O Cours de Thérapeutique revela uma preocupação com problemas da prática médica, similares inclusive com as preocupações que Bordeu e seus discípulos enfrentaram na mesma época – a imensa dificuldade de descrever as doenças, que eram infinitas em número, e a tentativa de determinar regras práticas e métodos seguros de cura em meio a tais perplexidades.

Segundo William (2003, p. 257) não é possível precisar a data de preparação do “Cours de Thérapeutique”, embora recentes pesquisas sugiram os anos entre 1764-1767. Mas, independente da época que tenha sido preparado, este curso continha muitos dos temas que seriam desenvolvidos no Nouveaux Éléments. Barthez inicia seu curso destacando a importância da observação e do raciocinar sobre a observação, tema onipresente do Iluminismo. Barthez pondera que a observação não é tão fácil como parece ser e propõe um método que chamou de empirismo racional; o julgamento dos fenômenos observados por um espírito treinado. Ele descreve seu método de observação: nem uma imaginação excessiva, que fazem de uma pequena coisa um monstro, nem tão pouco um espírito frio, que não possui a sensibilidade para perceber os fenômenos essenciais. O fogo da imaginação deve ser temperado pela lentidão no julgamento. No seu Cours thérapeutique Barthez faz várias referências ao princípio da vida ou principio vital, mas não oferece nenhuma definição e não explicita suas características essenciais. Quanto aos efeitos dos remédios, observa que estes agem de maneira variada, variação esta inevitável devido à ação autônoma do principio vital, que não é sujeito a leis, mas age sob capricho.

Segundo Williams (2003, p. 259), o princípio vital, mencionado embora não desenvolvido no seu Cours, foi também citado em suas duas obras em latim[16]. Portanto, não foi nestas primeiras obras ou trabalhos que Barthez ofereceu uma detalhada exposição dos particulares patológicos e terapêuticos que posteriormente, no Nouveaux, ele usaria para provar a existência e a força do princípio vital.

No Cours, Barthez demonstra sua simpatia pela medicina da Antiguidade, tendo Galeno como seu guia e usa seu esquema de “indicações” que consistia na natureza da doença, na constituição do paciente e na natureza do ar. A estas três “indicações”, Barthez adicionou duas de sua autoria, que seriam as “condições da alma” e o “estado das forças durante a enfermidade”, ambas temas de central importância no Nouveaux. Dentro desta estrutura conceitual, Barthez chamou atenção para diversos tópicos como a sensibilidade, simpatias, as forças vitais, bem como as influências, na saúde e na doença, do clima, estação do ano, temperamento, hora do dia, sexo, idade, ou seja, todos os “non-naturals”, ou seja, condições que sempre determinariam que não se encontre duas doenças iguais. Ele também pontuou sobre os estados e as forças da alma e as doenças que poderiam resultar de “chagrins”, e sobre as forças vitais desordenadas e exauridas, exaltando em seguida os remédios morais conhecidos e utilizados plenamente pelos Antigosmas então negligenciados.

Ainda no Cours, ele trata dos métodos de curar, os quais poderiam variar enormemente mesmo para doenças da mesma espécie. Todo tempo, Barthez chama a atenção para o tema de que o tratamento deve ser permanentemente adaptado, por um médico sempre alerta, porque cada doença individual é uma doença diferente, e nunca haverá duas doenças perfeitamente idênticas. (Ibid., p.291). 

 Ele fez constantes referências à natureza e ao funcionamento das forças vitais, como também sobre o poder ou força que ele nomeou - no singular - de princípio vital. Cada problema não solucionado, que Barthez encontrou ao estudar terapêutica, desde a administração dos remédios ao problema da generalização na arte de curar, o levou de volta ao principio vital.

É, portanto, um paradoxo da história que não tenham sido os vitalistas instalados na capital, mas Barthez, escondido em Montpellier, à parte da vida intelectual de Paris, que tenha produzido uma síntese, que demonstrou o lugar essencial que a medicina vitalista deveria ocupar no grande desenvolvimento filosófico daquele tempo. Talvez tenha sido o isolamento de Barthez em Montpellier que tenha provocado sua ambição de produzir este trabalho. De qualquer maneira, seu tratado – Nouveuax Éléments de la Science de l’Homme - que teve sua primeira edição em 1778 que estabeleceu sua primazia como médico-filósofo e deu ao vitalismo de Montpellier seu projeto no Iluminismo tardio. É deste livro, o mais importante da obra de Barthez, e considerado a melhor síntese do pensamento vitalista, que irei tratar no capítulo terceiro capítulo desta dissertação.

 

 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DO NOUVEUAX ÉLÉMENTS DE LA SCIENCE DE L’HOMME, DE P.-J. BARTHEZ

 

3.1 A proposta metodológica da Ciência do Homem

 

A primeira edição do Nouveuax Éléments de la Science de l’Homme, foi publicada em Montpellier, e data de 1778.

Essa obra, em sua primeira edição[17], é composta de um Discurso Preliminar, uma Introdução, e quatorze capítulos. A introdução e os capítulos são compostos em geral por duas, ou três seções. A maioria dos capítulos contém uma breve introdução, a maneira como o capítulo será dividido, e do que tratará e constará em cada seção.[18]

 Barthez em suas primeiras palavras do Discurso Preliminar aponta a “ciência do homem” – termo que consta do título da obra - como a primeira das ciências e aquela que os sábios de todos os tempos mais recomendaram. Mas, embora estes sábios, sem dúvida, tivessem em vista as faculdades intelectuais e morais do homem, este mesmo conhecimento não poderia ser exato se a física da natureza humana não estivesse bem conhecida. Argumenta, entretanto, que a ciência do homem não evoluiu como as outras ciências e que a causa deste atraso se deveu ao fato de, no estudo das ciências do homem, ter se negligenciado as regras fundamentais do verdadeiro método de filosofar. Na opinião de Barthez, é Bacon, no Novum Organum, que estabelece os “verdadeiros princípios do método filosófico”, requeridos para constituir a “ciência do homem”. Bacon (apud BARTHEZ, 1778, p. ii) teria dito que “é em vão que se esperam grandes crescimentos nas ciências quando nos limitamos a acrescentar ou a enxertar conhecimentos novos aos antigos; mas é preciso reconstruir o sistema inteiro das ciências, desde os seus primeiros princípios, se nós não queremos ficar sempre limitados a um movimento circular, que só permite progressos quase que imperceptíveis”. Barthez faz desta afirmação de Bacon a proposta de todo seu livro, ou seja, uma reforma completa da “ciência do homem”. Inicia esta proposta de reforma explicitando a metodologia usada, e segue em seu mesmo objetivo de reforma, ao postular seus princípios, leis e conceitos fundamentais. “Eu me proponho a fazer neste livro um ensaio da nova forma que deve tomar a fisiologia ou a ciência do homem.” (1778, ii,iii). Percebe-se que Barthez utiliza a expressão “ciência da natureza humana” como sinônima de “fisiologia”. Veremos, no decorrer deste estudo, o significado particular destas expressões, bem distinto do sentido que se é dado nos tempos atuais.

Barthez divide o Discours Préliminaire em três seções, onde ele exporá os princípios fundamentais do “Método” na Filosofia Natural; apontará como as principais escolas se afastaram deste mesmo “Método”; e finalmente, na terceira seção, ele pontua como sua obra estará conforme os verdadeiros princípios do método filosófico.

Segundo Williams (2003, p.261), Barthez discute e adota um estilo completamente distinto de seus colegas de Montpellier. Os médicos de Montpellier evitavam relacionar seus trabalhos com os filósofos e suas questões com o cosmos, a divindade e a natureza. Barthez recusa este padrão e adota uma grandiosa abordagem filosófica (Williams, 2003, p. 261). Williams sugere ainda que a abertura do NOUVEAUX ÉLÉMENTS - o Discours Préliminaire- lembra o estilo do ensaio escrito por Jean Le Rond d’Alembert, amigo e paciente de Barthez, para introdução da Encyclopédie. Segundo esta autora, Barthez também quebra com outros padrões do discurso vitalista, ao associar a si mesmo não com um médico, mas com um filósofo - invocando Bacon -, uma anglofilia desdenhada por seus colegas vitalistas, Venel e Bordeu. 

Tomando Bacon como exemplo, como vimos anteriormente, Barthez aborda questões metodológicas, as quais ele considera, como todos os pesquisadores de sua época, essenciais ao progresso de qualquer ciência. Segundo Barthez, “a Filosofia Natural tem por objeto a procura das causas dos fenômenos da natureza enquanto eles possam ser conhecidos a partir da experiência” (Ibid., iii). Entretanto, segundo Barthez, a experiência não pode nos fazer conhecer a essência das causas primeiras e só poderia manifestar as leis de sucessão dos fenômenos. Barthez então define o que ele entende como causa primeira: “Entende-se por causa primeira o que faz com que o fenômeno venha sempre na sequência de algum outro, ou que contenha a razão natural dessa sucessão supostamente constante.” (Ibid., iv). Barthez dá ênfase aos problemas associados ao termo “causa”, o qual, segundo ele, deve ser limitado à descrição do fenômeno observado. 

Barthez defendia que as causas primeiras não poderiam ser definidas em sua essência, embora sua existência nos fosse intimamente reconhecida. Os fenômenos da natureza só poderiam nos mostrar a ordem em que se sucedem os efeitos, e não o que constitui a necessidade desta produção. (Ibid, v). Portanto, na Filosofia Natural, não se poderia conhecer outras as causas, exceto as leis que o cálculo da experiência houvesse descoberto na sucessão dos fenômenos. E conclui que todas as explicações dos fenômenos naturais só podem nos indicar a “causa experimental”. Barthez afirma que poderíamos dar a estas causas experimentais diversos nomes, sinônimos, igualmente indeterminados, de “Princípio, Força, Faculdade, e etc.”(Ibid., vi). 

Williams (2003) comenta que Barthez, na segunda edição do NOUVEAUX ÉLÉMENTS, publicada em 1806, expande esta discussão, negando a possibilidade de uma “demonstração” dos princípios, como aquela tentada por Descartes, e vincula seu próprio entendimento de causalidades a Newton, considerando, como vimos acima, sem importância as diferenças semânticas entre termos que sempre funcionaram como equivalentes à “causa”, incluindo “termos sinônimos e igualmente indeterminados como “princípio”, “poder”, “força” e “faculdade”. 

Barthez aponta o erro dos Antigos que multiplicaram o número de causas experimentais, introduzindo com frequência uma faculdade nova para explicar fenômenos dependentes de faculdades que eles já haviam reconhecido. (Ibid, viii.). Barthez, entretanto, critica os Modernos que se prenderam demais às imperfeições dos Antigos, que não devem ser repreendidos por estabelecer causas ou “faculdades ocultas”, mas sim por não terem limitado o número destas faculdades. Para Barthez, os Modernos teriam cometido o erro oposto, ao diminuir nas ciências naturais o número de causas experimentais para muito abaixo do observado. E ainda alguns deles (os mecanicistas) teriam atribuído todas as forças motrizes do corpo à única força de comunicação do movimento pela impulsão, reduzindo assim as faculdades ocultas dos Antigos a uma só, que eles acreditaram poder destruir inteiramente. 

E ainda acrescenta a respeito do bom método de filosofar dentro das ciências naturais: “Em toda ciência natural, as hipóteses que não são deduzidas dos fatos próprios a esta ciência, devem ser vistas como desconhecidas do bom método de filosofar”. (Ibid., ix).

Portanto, Barthez critica os Antigos pela multiplicação do número de causas experimentais, mas discorda também dos modernos que as reduziram a apenas uma força, assim como também por introduzirem hipóteses que não são deduzidas de fatos próprios àquela ciência (como a introdução das leis da física e da mecânica ou da química para a explicação de fenômenos relacionados à ciência d        o homem).

Não devemos, segundo Barthez, nos propor a adivinhar a Natureza por hipóteses desconhecidas aos fatos, que alteramos com frequência conforme eles se afastem das nossas hipóteses. Seria combinando fatos bem observados, e formando analogias simples, mas abrangentes, relativas a cada causa ou faculdade experimental já estabelecida, que chegamos à descoberta das leis secundárias desta causa, que já tinha sua natureza conhecida. 

 

3.2 As Escolas Mecanicista, Animista e Solidista, em relação ao “método de filosofar”

 

Barthez aborda em seguida os obstáculos que as escolas mais célebres (de sua época) na ciência do homem colocam aos progressos dessa ciência ao distanciarem-se do bom método de filosofar. As escolas por ele citadas e criticadas são a mecanicista, a animista e a solidista, que ele aponta como uma nova escola que rejeita a doutrina das outras duas citadas e estaria ganhando notoriedade naqueles dias.

Os animistas teriam refutado com muita habilidade os conceitos mecanicistas, provando que os principais fenômenos da saúde e da doença não podiam ser explicados por movimentos mecânicos. Os animistas, para explicarem os fenômenos da saúde e da doença, recorreram à influência da alma pensante, que seria a única causa da ação espontânea de todas as partes do corpo. Barthez refuta igualmente a explicação dos animistas, afirmando que a experiência não pode ligar a causa dos movimentos independentes da vontade à faculdades de um ser espiritual, que é definido por noções metafísicas e teológicas.

Percebemos que Barthez não refuta, nem discute a existência da alma, mas afirma que a experiência não pode discutir questões definidas por conceitos metafísicos e teológicos. Esta posição, que não nega, ao contrário, afirma a existência do “autor da Natureza”, entretanto alega que “na filosofia natural não se pode conhecer outras causas senão aquelas que o cálculo da experiência descobriu na sucessão dos fenômenos.” (Ibid.,v).

Quanto aos solidistas, que teriam se inspirado nas ideias de van Helmont, estes acreditavam que cada órgão possuía uma vida que lhes era própria, distinta da vida do corpo. Entre os médicos solidistas[19], Barthez cita Baglivi e La Case, mas considera esta doutrina afetada por um vício semelhante às teorias de Bellini e Boerhaave, e de outros médicos mecanicistas. Barthez afirma que não cessará de combater as opiniões das outras escolas que acredita equivocadas, e que, se sua doutrina estiver fundamentada, ela será suficiente para refutá-las, já que diverge essencialmente destas outras sobre os pontos mais importantes da fisiologia.

Barthez sublinha que o objeto principal de sua pesquisa na ciência do homem são as leis ou determinações do princípio da vida. “Vejo o princípio da vida como a causa experimental mais geral e da ordem mais elevada que nos apresentam os fenômenos da saúde e da doença.” (Ibid., xviii).

Afirma que, para uma aproximação maior do que até então foi realizado a respeito do conhecimento das leis gerais sobre as forças do princípio da vida, ele se esforçará por empregar apenas analogias simples e abrangentes. Os fatos relativos à historia das doenças são da maior importância para se formar ideias justas sobre a economia da saúde. 

Atesta que os conhecimentos relativos à mecânica do corpo ou à metafísica da alma não terão nenhuma aplicação sobre os principais objetos que tratará na primeira parte do livro. Estes objetos serão as forças do princípio vital, suas comunicações e simpatias, sua reunião em um sistema, suas modificações de acordo com os diferentes temperamentos, idade, e extinção com a morte. 

Barthez avisa que, em outras partes do livro, tratará da aplicação da mecânica e da metafísica. Os conhecimentos sobre a metafísica da alma serão abordados na parte que tratará dos órgãos dos sentidos e na discussão das relações que tem entre si as afecções do ser pensante e do princípio da vida. Barthez também esclarece que “a física e a mecânica devem ser aplicadas não para fornecer a lógica das causas primordiais das funções do corpo vivo, mas para a perfeição dos instrumentos pelos quais estas funções se executam”. (Ibid,. xx). Estes aspectos especiais, da relação da alma com os sentidos e do papel limitado das leis da mecânica no corpo vivo, serão tratados e explicados mais a frente.

Em seguida, Barthez irá introduzir seu principal objeto, o princípio vital, começando pelo estudo e definição dos princípios de movimento. 

 

3.3 Os princípios do movimento e o Princípio da Vida

 

Barthez nomeia de “Princípio” as causas experimentais dos fenômenos do movimento e da vida. “Assim, eu chamo de Princípio Vital do homem a causa que produz todos os fenômenos da vida no corpo humano.” (Ibid.,1). Segundo Barthez, o princípio da vida não era uma abstração metafísica, mas uma causa empiricamente estabelecida, a única explicação possível para fenômenos que não eram advindos de causas puramente materiais, nem pela intervenção da alma imaterial.

Aristóteles foi o primeiro, segundo Barthez, que empregou a expressão ‘princípio vital dos animais’. Para Aristóteles, este termo era sinônimo de principio vivificante do sêmen, que ele acreditava ser análogo ao elemento dos astros. Aristóteles, como muitos de seu tempo, acreditava que muitos animais eram produzidos pelo calor do sol. (Ibid., 1, nota a).

Segundo Barthez (Ibid,.p. 2) o princípio da vida e o princípio do movimento se diferenciam apenas pelo grau de complexidade, e percebe-se uma escala gradual, desde os princípios do movimento mais simples até os princípios da vida que geram e conservam os corpos organizados dos vegetais e dos animais. Os princípios da vida excitam e modificam, segundo leis muito mais complicadas, a ação de partes da matéria.

Williams comenta (2003, p. 263) que, ao contrário de outros vitalistas, que não demonstraram interesse em estabelecer uma conexão das forças vitais dos seres humanos com outras formas de vida ou com as forças gerais da criação, Barthez dedicou-se ao problema da particularidade da força vital do ser humano e sua relação com a natureza geral da matéria e com o mundo celestial e terrestre.

 

A primeira olhada que os homens lançaram para o Universo lhes apresentou uma extensão imensa e fixa com a qual eles relacionaram todos os movimentos dos animais, dos elementos e dos corpos celestes. Não reconheceram atividade, a não ser naqueles que se movimentavam, e o restante da natureza lhes pareceu bruto e inanimado. Mas à medida que a inteligência se elevou, ela descobriu que todas as partes da matéria possuíam uma atividade que lhes é própria e que aí manifesta os diversos princípios de movimento que lhes anima. (BARTHEZ, 1778, p. 2).

 

Portanto, haveria diversos princípios de movimento, e o princípio da vida seria um deles, mas muito mais complexo em seus fenômenos e leis. Para Barthez, o primeiro princípio de movimento, aquele onde as leis são as mais simples, é a força de impulsão[20]. Porém, Barthez faz uma importante ressalva: “[...] a força de impulsão, por mais simples que ela seja, permanece incompreensível, da mesma maneira que as forças da natureza, que seguem leis mais complicadas”. (Ibid., 3). De fato, como vimos no primeiro capítulo, assim como Newton não explicou as causas primeiras da lei da gravidade, da mesma forma, como veremos mais à frente, Barthez se recusa a definir essencialmente o princípio vital.

A segunda força da natureza, na escala de complexidade, é a força de atração (também uma lei de Newton). “Esta força, menos simples e mais fecunda, perpetua o sistema do mundo pela gravitação dos astros” (Ibid., 3). Estas forças seriam as mais básicas e operariam em todos os corpos. A seguir, haveria outra força, mais complexa que as de impulsão e atração, e que combina a massa de diversos fósseis, une filetes de gelo e cristaliza os sais. Por último nesta escala, Barthez vê as forças vitais dos vegetais e animais. Estas forças, por definição, não podem ser explicadas pela lei da estática, da hidráulica ou da química e “segundo os planos que o Autor da natureza traçou para cada espécie, estes princípios produzem e conservam, nos variados indivíduos, uma enorme variedade de formas superficiais e de organização interior.” (Ibid., 4). Os princípios de vida vegetal e animal são análogos, e a diferença consiste na menor complexidade das leis e dos órgãos do reino vegetal. 

Finalmente, o homem se eleva acima dos animais devido à perfeição de seus órgãos e por sua inteligência. O princípio vital do homem “é unido intimamente à sua inteligência e aos seus órgãos.” (Ibid.,p.5). Portanto, o princípio vital aqui já é brevemente apontado como “ser” distinto da alma racional (ou da inteligência), e da matéria de seu corpo, tendo com eles uma íntima união.

Barthez, porém, sugere que, para melhor conhecermos as forças deste princípio vital do homem, deve-se estudá-los separadamente das afecções da alma pensante e das forças do corpo organizado.

Acima das forças geradoras e vitais dos animais, Barthez coloca as forças da natureza universal.

 

3.4 O Princípio Vital segundo as escolas médicas e filosóficas

 

Williams (2003) afirma que a investigação de Barthez a respeito do mundo natural serviu apenas para insistir na particularidade do humano. Uma vez estabelecidos os fenômenos da especificidade humana, e os privilégios da medicina, Barthez parte então para a difícil questão da natureza do princípio vital. Barthez estava consciente de que, ao afirmar a existência e primazia de um “princípio da vida independente”, o que consistia em seu maior objetivo, estaria caindo em um terreno metafísico e entrando em uma controvérsia antiga sobre a distinção entre corpo e alma, matéria e espírito, mortalidade e imortalidade. Consciente da importância desta questão para o sucesso de sua nova doutrina, Barthez propõe o estudo das diversas correntes filosóficas, desde a Antiguidade, sobre a relação mente e corpo. 

Por este motivo, Barthez dá a esta pesquisa os dois primeiros capítulos de seu livro. Estes primeiros capítulos do Nouveaux são dedicados ao estudo das diferentes escolas filosóficas e médicas, quanto à questão fundamental concernente à natureza do princípio vital do homem – se este é ou não um ser distinto do corpo e da alma. No primeiro capítulo, Barthez expõe a opinião das escolas que acreditaram que o Princípio da vida não é um ser distinto do corpo e da alma. Segundo Barthez, fizeram parte deste grupo: Hipócrates, Epicuro, Heráclito, Aristóteles e Descartes. 

No segundo capítulo, trata das escolas que defenderam a opinião de que o princípio da vida no homem era de um “ser” distinto da alma e do corpo. O primeiro filósofo, segundo Barthez, que admitiu mais de uma alma no homem foi Pitágoras. Ele teria dito que a alma humana é a harmonia do corpo vivo, sendo nutrida pelo sangue e fixada pelas artérias, veias e nervos. Portanto, ele distinguiu no homem uma alma mortal, que possui partes, e uma alma racional e imortal, que é emanada de Deus ou da alma do mundo (que ele descreve como a harmonia do universo), e que se rejunta depois de ter sido purificada durante diversas transmigrações. Platão distinguiu na alma do homem a inteligência ou a parte racional, que é imortal, da parte irracional. Ele pensou que a alma imortal, que se move e que produz por ela mesma o movimento e a vida, é emanada do Deus Supremo. Quanto à alma mortal, Barthez diz ter lhe parecido que, segundo Platão, ela seria a emanação de uma alma ou de um princípio de movimento que sempre existiu na matéria, mesmo antes da formação do mundo. Esta alma mortal estaria sujeita às paixões, por necessidade de sua natureza. (Ibid., p.19). Portanto, Barthez entende que Platão admitiu um princípio de movimento que acreditou ser inerente à matéria e ter existido desde o caos. Os estóicos distinguiram no homem a alma racional e suas partes, que seriam transmitidas pelo sêmen. O Imperador Marco Aurélio, o principal autor desta escola na opinião de Barthez, distinguiu de maneira mais precisa o corpo, a alma e o espírito do homem. Marco Aurélio teria dito (apud Barthez, 1778, p.22) que o espírito da vida, que é distinto da alma e do corpo, não é sempre o mesmo, sendo permanentemente renovado pela respiração, é unido intimamente com o corpo, é o espírito invisível responsável pelo movimento dos membros, e enfim penetra nos fluidos e no sangue. Barthez cita são Paulo[21], e uma passagem de santo Agostinho[22], e conclui, por esta passagem, que são Paulo, provavelmente, também distinguia o espírito vital como uma substância diferente da alma. 

Bacon é, a seguir, o pensador mencionado por Barthez, como o primeiro filósofo moderno que distinguiu no homem o princípio vital e a alma pensante como duas partes separadas. Segundo Bacon, o homem possui duas almas, uma racional, que vem do sopro de Deus; outra irracional, que é produto da matriz dos elementos e sendo esta comum com os selvagens. Bacon define esta alma irracional como uma substância corporal atenuada e tornada invisível pelo calor, possuindo a natureza do ar e do fogo. Nos animais perfeitos, esta alma irracional tem sua principal sede na cabeça, encontrando-se ainda no percurso dos nervos e no sangue espirituoso das artérias (BACON apud BARTHEZ, NOUVEAUX ÉLÉMENTS, p. 23). Barthez, a seguir, cita Leibnitz, Bayle e Le Clerc como participantes deste mesmo grupo, mas com algumas peculiaridades (Ibid., 23-24). Finalmente Barthez afirma que, entre todos os Modernos, foi van Helmont quem mais desenvolveu os fenômenos que proclamam no homem um princípio de vida distinto do corpo e da alma racional e, não obstante, dotado de sentimento e de percepção. Entretanto, alega que van Helmont, embora um grande químico, por pouco conhecer os fatos relativos à economia animal, foi entretido por “meditações perto do delírio” e que, “sobre as afecções do princípio vital, que ele nomeou de Archée, ele produziu um grande número de ideias vãs, às quais sua imaginação ardente e perturbada imprimiu uma força de persuasão que lhe assegurou ainda muitos seguidores” (Ibid., p. 25). 

Boerhaave também teria usado, segundo Barthez, os mesmos dogmas de van Helmont, mas com correções, em sua lição sobre os nervos. Hoffmann, outro famoso médico da escola mecanicista, também teria admitido a existência de vida, que seria de natureza intermediária entre a alma e o corpo, mas seria um “ser” de razão, com o que Barthez discordou, porque não se pode passar por gradações do corpo à alma imaterial, bem como pelo fato de que estas duas substâncias são de naturezas que se excluem. Barthez finaliza este capítulo, apontando a posição de médicos da escola de Hermann Boerhaave (como Gabius, Kau Boerhaave e outros) - que pertencia à escola mecanicista -, que relacionavam o princípio da vida ao corpo, mas ensinavam que o princípio vital diferia de todas as outras forças motrizes e que seguia suas próprias leis, como só a observação faria descobrir.

Com este comentário, tão natural, em relação aos médicos seguidores de Boerhaave, então o médico mecanicista mais proeminente da época, de que estes também descreviam a existência do princípio da vida, assim como muitos outros apontados por Barthez neste capítulo, percebemos como as linhas divisórias que separam os rótulos, mecanicistas, animistas, vitalistas, muitas vezes eram sutis ou mesmo confusas. Estes médicos concordavam e discordavam, ao mesmo tempo, em muitos pontos, fazendo desta tessitura algo bem complexo, sugerindo talvez que estes rótulos tenham sido reforçados, ou coloridos com tintas mais fortes, à posteriori. 

Barthez lembra aos leitores, que em 1773 ele havia publicado um discurso, De Principio Vitalis Hominis, onde teria feito um esboço de sua doutrina sobre o princípio vital e demonstrado que este princípio existe independentemente da mecânica do corpo humano e das afecções da alma pensante. A seguir, Barthez tratará da natureza do princípio vital, já esboçada em seu discurso de 1773.

 

3.5 A natureza do Princípio Vital

 

No capítulo III Barthez aborda a natureza do princípio vital. Ele tem por objetivo provar que o princípio vital deve ser concebido por ideias inteiramente distintas daquelas dos atributos do corpo e da alma. Barthez colocará a questão, se é mais verdadeiro que o princípio vital seja uma substância, ou se ele é apenas uma modalidade do homem vivo. 

 Barthez denomina o princípio vital com o “princípio do sentimento e do movimento no homem vivo”, e diz que ele só pode ser entendido, ou concebido, como uma modificação do corpo, se deixarmos de lado ideias antigas a respeito das qualidades essenciais da matéria (ou seja, como vinha sendo proposto pela escola mecanicista desde Descartes).

 

Os princípios do movimento e do sentimento no homem vivo não podem ser concebidos como uma modificação do corpo a menos que se rejeite as antigas ideias que consideram como qualidades essenciais à matéria a extensão exclusiva a todas as percepções, e a inércia que impede os movimentos espontâneos, independente de quão móvel ela possa ser. (Ibid., 28).

 

Segundo Barhez, para entendermos os princípios da sensibilidade e do movimento, devemos rejeitar as antigas ideias mecanicistas. Ele comenta a vitória das observações de Stahl e seus seguidores sobre “aqueles que quiseram explicar todas as funções da economia animal através das leis da física” (Ibid., p. 28). Tais objeções afirmavam que os movimentos dos órgãos estavam além da ação de toda causa mecânica. A doutrina dos mecanicistas já havia sido bastante combatida, a partir “dos nossos conhecimentos a respeito das forças motrizes dos corpos” (Ibid., p. 28). Mas havia ainda que combater a doutrina dos animistas, “que tendo sucedido àquela dos mecanicistas, foi bastante difundida nos últimos tempos ”(Ibid., p.29). Para Barthez, é necessário demonstrar que, ao se adotar as ideias recebidas sobre a natureza da alma, o princípio vital não pode ser concebido como uma de suas faculdades. Segue-se uma discussão sobre o que seria função da alma ou do princípio vital em relação às funções do corpo. Barthez discute com os stahlianos sobre os movimentos voluntários, os movimentos que o hábito retira à percepção, os movimentos vitais dos órgãos e os movimentos involuntários, e quais destes movimentos estariam a cargo da alma ou do princípio vital. Barthez defende que a alma não possui uma percepção deliberada dos movimentos vitais. O princípio vital, ao contrário, opera sozinho, todos os movimentos dos órgãos, seja com a ajuda e desejo da alma, como nos movimentos voluntários, seja sem esta influência, como nos movimentos que o hábito permite executar automaticamente, e ainda nos movimentos vitais e involuntários. Barthez utiliza um argumento de von Haller[23], no qual ele diz que Haller teria percebido muito bem que, se a alma produzisse todos os movimentos dos órgãos que tem por finalidade a vida do homem, seria necessário que, a todo momento, a alma sentisse e realizasse um número imenso de vontades particulares (Ibid., 31). Barthez continua contra-argumentando a respeito de a alma ser a responsável por todas as ações voluntárias e involuntárias do corpo, cita Gassendi, e de novo são Paulo, e depois Condillac, que se opõe à opinião de São Paulo. Barthez termina esta discussão afirmando que estas questões trazem o exemplo da incerteza das evidências no campo das opiniões metafísicas.

A conclusão que Barthez dá a esta seção é que se as operações do princípio da vida não podem ser explicadas por movimentos mecânicos, nem podem também, da mesma forma ser explicadas pela vontade livre e racional da alma pensante.

Resta então saber que tipo de entidade constitui o princípio da vida. Barthez coloca então a questão: será o principio da vida uma substância ou uma modalidade do homem? O princípio do homem existiria por si mesmo ou apenas quando unido ao corpo? Barthez coloca a questão: sob uma lei geral estabelecida pelo Autor da natureza, é possível que uma faculdade, dotada de forças sensitivas e motrizes, brote necessariamente da combinação da matéria de cada corpo e que esta faculdade contenha a razão suficiente dos movimentos necessários à vida, em todo o seu curso? (Ibid., 35). Apresenta também outra possibilidade, para ele a mais provável, de que Deus tenha unido à combinação da matéria disposta para cada animal um princípio da vida que subsista por si só e que venha diferir, no homem, da alma racional. Nesta seção, embora isto não tenha sido explicitado, Barthez dialoga o tempo todo com Haller e sua teoria, que era diversa da sua e que afirmava que a vida brotava da intimidade da matéria. 

Barthez afirma que, só é possível recorrer a argumentos prováveis a respeito destas duas distintas opiniões e vai indicar as “propriedades negligenciadas até o momento e pelas quais é possível tornar bastante verossímil o sentimento daqueles que acreditam que o princípio vital tem sua existência distinta daquela do corpo que ele anima.” (Ibid., p. 36). Após numerosos exemplos com os quais procura demonstrar sua afirmação - como o de que o princípio da vida pode ser destruído sem nenhuma alteração sensível da integridade e das condições físicas dos órgãos, ou ao contrário, que o princípio vital sobrevive por muito tempo a lesões consideráveis dos órgãos mais essenciais – Barthez conclui que existem numerosas probabilidades a favor da opinião que considera o princípio vital separado da alma e do corpo, embora seja da mesma forma possível que tal princípio seja apenas uma faculdade inata e que governe todas as cadeias dos movimentos complicados de que o corpo animal é suscetível.

 

Vemos que existem numerosas probabilidades em favor da opinião que faz do princípio vital um ser separado da alma e do corpo. Mas eu creio que devo repetir que é igualmente possível que o princípio vital seja uma faculdade inata, e que governa todas as cadeias dos movimentos complicados aos quais o corpo animal é suscetível. (Ibid., 40).

 

Com esta declaração, ele recusa-se a dizer se o princípio vital é corpo ou alma, matéria ou forma, substância ou faculdade. Barthez afirma que optou por personificar o princípio da vida do homem para poder falar de uma forma mais cômoda, mas que este também poderia igualmente ser pensado como uma simples faculdade vital do corpo humana.

 

Durante todo o curso deste livro, eu personifico o princípio vital do homem, para poder falar de uma maneira mais cômoda. Entretanto como desejo atribuir a ele o que resulta imediatamente da experiência, nada impedirá que nas minhas exposições que apresentarão tal princípio como um Ser distinto, não se substitua a noção que se tem dele como uma simples faculdade vital do corpo humano. (Ibid., 41).

 

Barthez, se perguntando mais uma vez em que consiste o princípio vital do homem, afirma: “é um Ser onde vemos a unidade e as partes, e do qual se ignora a maneira de existir, embora sua existência seja manifestada por um número infinito de fatos.” (Ibid., p.41).

Haigh (1977) escreveu um interessante artigo, onde argumenta que Barthez é dualista, assim como os animistas e os mecanicistas, em oposição aos solidistas que seriam monistas. Embora o artigo seja esclarecedor em relação às diversas doutrinas do século XVIII e seu posicionamento em relação à questão da alma e do corpo, vê-se que Haigh faz uma afirmação, que na verdade é apenas parcial, pois Barthez embora simpatize com a ideia de que o princípio vital é um “Ser” distinto da alma e do corpo, como vimos nas duas notas acima, ele não “fecha” com esta posição, ou melhor, afirma ainda que poderia ser o contrário, que o princípio vital poderia ser inato à matéria, e só o que advém da experiência pode ser tomado como verdade. No caso do princípio vital, a posição de Barthez, durante toda esta obra é defender possibilidades, através de relatos, lidando com causas próximas e secundárias, deixando a origem ou a essência do princípio vital para o campo das possibilidades ou como uma causa oculta.

 Barthez, mais uma vez, esclarece seu objetivo de associar fatos a analogias simples e muito aprofundadas e avançar cada vez mais no conhecimento das forças, das funções, e das afecções desse princípio vital desconhecido; e que se as analogias por ele propostas forem bem formadas, elas resultarão em um corpo de uma doutrina nova. 

Uma nova doutrina, baseada em fatos e analogias, era a proposta de Barthez. Ele adota uma postura requerida à ciência indutivista, a qual se afasta da procura da causa “primeira” ou das essências das coisas, em favor das “causas experimentais”. A ciência do homem foi, portanto, por definição, uma ciência de observação dos fenômenos, que poderia ser explicada pela referência a um princípio vital, o qual era ele mesmo, indefinível. (Williams, 2003, p.264).

 

3.6 As forças sensitivas e motrizes do princípio vital e e conceito de sensibilidade e irritabilidade

 

O capítulo IV, V, e VI tratam das forças sensitivas e motrizes nos sólidos e nos fluidos do corpo animal. Esta divisão do corpo animal há longo tempo aceita, entre sólidos e líquidos, confere uma estrutura conceitual na qual Barthez irá desenvolver os problemas específicos de fisiologia, patologia e terapêutica, que estarão explicitados nestes próximos capítulos, bem como nos capítulos que tratarão do calor vital, das simpatias (o sistema particular de comunicações do princípio vital) e dos temperamentos. 

No século XVIII houve uma vasta discussão entre diversos autores, de escolas diversas, sobre a questão da sensibilidade e da irritabilidade. A questão da sensibilidade, bem como a questão do movimento já era comentada desde a Antiguidade. Galeno já havia formulado a doutrina de que toda sensibilidade era limitada ao sistema nervoso. Os músculos esqueléticos, pela teoria galênica, eram levados à ação pelos nervos, ou seja, pelo pneuma psíquico que executava os movimentos voluntários. As fibras contráteis de órgãos como estômago, útero, intestinos, não eram consideradas fibras musculares, sob o ponto de vista desta teoria. Estes órgãos eram dirigidos por “faculdades naturais” e eram totalmente distintos dos órgãos “psíquicos”, ou músculos esqueléticos e nervos. [24]

A irritabilidade como uma propriedade geral havia sido proposta por Francis Glisson (1597- 1677), em seu último trabalho denominado On the stomach and gut (1677)[25]. Em 1752, Albrecht von Haller (1708-1777) apresentou e publicou suas experiências e conclusões sobre a irritabilidade[26]. Através dos experimentos descritos neste ensaio, Haller concluiu que apenas as partes supridas de nervos possuem sensibilidade, ao passo que a irritabilidade é uma propriedade das fibras musculares. Portanto, para Haller, a sensibilidade e a irritabilidade eram distintas e independentes entre si (Haller, 1775, p. 690).

A evolução do conceito de irritabilidade entre Glisson e Haller foi apresentada pelo último em seu próprio ensaio (Haller, 1775, p.692). Outros autores do século XVIII, como Robert Whytt e Bordeu[27] também abordaram o tema, este dois últimos numa perspectiva animista/vitalista. Portanto, embora esta discussão já existisse sob diferentes pontos de vista, no NOUVEAUX ÉLÉMENTS o tema é largamente debatido nos capítulos IV, V e VI, e é principalmente com as teorias de Haller que Barthez vai dialogar.

 

3.6.1 As forças sensitivas nos sólidos do corpo

 

O capitulo IV trata das forças sensitivas nos sólidos do corpo animal. A primeira seção se ocupa da distinção entre as sensitivas e as forças motrizes e da relação que estas forças possuem entre si. Na segunda seção é abordado o grau e a espécie de sensibilidade existente em cada órgão.

Para Barthez, a sensibilidade era distinta da irritabilidade, como também uma força ativa, e não um estado passivo do princípio vital. Inicia sua exposição criticando teóricos (não nomeados) que acreditavam que a sensibilidade era uma resposta passiva a estímulos externos. Afirma também que a sensibilidade não é o mesmo que princípio vital, como “alguns” haviam defendido (principalmente Bordeu), mas uma força governada pelas leis primordiais do princípio vital. 

Segundo Barthez, as forças sensitivas e motoras possuem proporções de atividade bem diferentes nos diversos órgãos. Barthez fornece inúmeros exemplos que demonstram a independência da sensibilidade em relação às conexões nervosas, como acontece na dura-máter e nos nervos, onde a sensibilidade é extrema e a mobilidade é muito fraca. Embora o coração possua um movimento perpétuo, foi demonstrado que, em uma rã, a sensibilidade do coração é bem menor que a do músculo da coxa. Outra experiência demonstrou que nas vilosidades de um intestino aberto, a aplicação de vinho quente excitaria grandes movimentos nos intestinos, e mesmo tendo havido um pouco de sentimento, não houve dor. 

As forças sensitivas do princípio vital dos órgãos podem ser modificadas pelas grandes variações das forças motrizes; inversamente, a variação das forças motrizes pode ter uma influência indireta sobre as forças sensitivas, pois elas podem aumentar a tensão das fibras ou diminuir o grau de coesão e estas mudanças de estado físico dos tecidos dos órgãos podem modificar extremamente a sensibilidade. 

A afirmação de Barthez de que as forças sensitivas possuem sobre as forças motrizes uma influência que parece ser a única causa determinante da ação das forças motrizes sobre os órgãos quando elas são solicitadas pelas causas exteriores é contrária a opinião de Haller sobre a irritabilidade. Barthez declara que Peyer e Haller atribuíram todos os movimentos musculares (em experiências com rãs e outros animais, onde esses eram retalhados quando vivos, a sangue frio) a uma propriedade escondida nas fibras musculares, e eles diziam que esta propriedade seria independente de todo sentimento, visto que o sentimento não poderia existir sem alma, e este não estaria mais presente nas partes separadas do corpo. Barthez contra-argumenta que é certo que estes membros amputados não possuam comunicação com a alma simples ou indivisível, mas que seria fácil perceber que estas partes que foram separadas, conservam uma parte de princípio da vida que anima todo corpo do animal, e do momento que seus membros são irritados, se movem pelo sentimento que possuem da irritação. Barthez atribui este resto de movimento das partes recém extirpadas ao instinto, que segue um resto de faculdade vital que ainda subsiste nestes membros. (Ibid., 47) 

Percebemos que tanto Haller como Barthez têm opinião concordante a respeito da alma simples que não está mais presente no coto amputado. Mas, enquanto Haller atribui o movimento ou contração que persiste nesta parte a uma propriedade escondida nas fibras musculares, Barthez a atribui ao instinto, que segue um resto de princípio vital que faz com que a fibra muscular se contraia.

Barthez ainda anuncia algumas experiências curiosas de diversos autores, como M. Fontana em seu Recherches Philosophiques, ou Bacon, Karl Boerhaave (sobrinho de Hermann Boerhaave), ou ainda relatos de Herodes onde eles relatam experiências e observações sobre sentimentos e paixões que as partes embora extirpadas, ainda conservariam. Um avestruz flechado na cabeça que corre como se nada houvesse; uma cobra recém separada de sua cabeça que volta para as pedras onde havia sempre se escondido; um coração humano que havia sido retirado de um assassino, e foi jogado ao fogo e pulou a uma altura considerável, todos estes fatos serviam para comprovar que estas partes recém extirpadas do corpo vivo, executavam movimentos que só podia-se atribuir à percepção, ao instinto, e ao sentimento que subsistem nestas partes após a morte do todo. Donde Barthez conclui que é em vão que se negue que a irritabilidade depende da sensibilidade e que devemos destruir a falsa crença de que o sentimento depende da alma e que é destruído no corpo no momento que é separado deste pela morte. (Ibid., 49).

Segundo uma observação de Williams (2003, p.266), Barthez se referiu a Haller, do começo ao fim do NOUVEAUX ÉLÉMENTS, delicadamente, nunca empregando termos sarcásticos, tal como ele por vezes usava ao discutir o trabalho de outros fisiologistas. Mas, segundo Williams, eram as ideias de Haller, referentes à sensibilidade e à irritabilidade serem forças independentes, que ele queria refutar. Os ensinamentos de Haller, sobre a dependência da sensibilidade às estruturas nervosas, e com relação à força da “irritabilidade” pertencer à fibra muscular, haviam conquistado muitos adeptos em seu tempo.

Com relação à visão de Haller sobre a sensibilidade, Barthez apresenta provas experimentais, discordando das afirmações de Haller de que a sensação seria registrada apenas nas partes do corpo que fossem supridas de terminações nervosas. Resultados obtidos por investigados como C.N, Le Cat, A.C. Lorry, e seu colega de Montpellier Alphonse Tandon, demonstraram conclusivamente, segundo Barthez, que partes altamente sensíveis, como a dura-máter e os ligamentos, possuíam pouquíssimos nervos. Barthez também acumulou observações demonstrando que substâncias como o sal marinho, o colocynthis[28], o jalap[29]produziam efeitos marcadamente diversos nas diversas regiões do corpo, fato que provaria que a sensibilidade variava de intensidade em diferentes órgãos e regiões.(Ibid., p.62). 

Segundo Barthez, o conjunto dos fatos conhecidos sobre a irritabilidade dos músculos que subsiste após sua separação do corpo vivo, e que não pode mais ser determinada pelos seus nervos, parece demonstrar evidentemente que esta irritabilidade depende de um princípio sensitivo que anima ainda este músculo.

Barthez conclui esta seção afirmando que a influência das forças sensitivas do princípio vital sobre as forças motrizes se manifesta na contração dos órgãos irritados, desde que estes sejam solicitados por causas externas. Mas esta influência existe paralelamente na economia animal, onde uma infinidade de causas de irritação excita os movimentos dos órgãos. Por fim, ele afirma que não se pode estabelecer nenhuma lei fixa de correspondência entre os sentimentos interiores e os movimentos que eles determinam. Assim, a influência das forças sensitivas sobre as motrizes possuem leis extremamente variáveis nos diferentes homens, bem como nas variadas afecções em cada homem em particular. Barthez percebeu que nos estados que se aproximam mais de uma constituição saudável a cada idade, por cada tipo de temperamento, existe uma influência média e constante das forças sensitivas sobre as motoras, e Barthez denominou esta disposição de estabilidade de energia. (Ibid., 54). Percebe-se nas palavras, “cada”, “diferentes”, a presença de uma visão que privilegiava o particular, e o individual, ao geral, visão esta uma marca do vitalismo, em contraposição ao mecanicismo.

Em seguida, Barthez vai apresentar a existência de diferentes graus e também de diferentes espécies de sensibilidade nos diversos órgãos e lugares do corpo animal. É apenas através da observação que, segundo ele, se pode conhecer estas diferenças relativas à força sensitiva. A observação faz perceber que a variação das forças sensitivas em cada parte depende da coesão dos tecidos. Através deste método podemos também perceber as singularidades e a espécies de sensibilidade própria a cada órgão. Barthez observou que a sensibilidade é fortemente aumentada nas partes moles no momento que suas fibras são violentamente tensionadas por causas externas; e que as partes duras só se tornam sensíveis em consequência a causas internas de sua organização. A sensibilidade está aumentada nas partes duras do corpo humano, como nos ligamentos, no momento em que a coesão das moléculas de suas fibras é forçada por causas interiores. Os ossos adquirem sensibilidade pela modificação em sua estrutura e se tornam dolorosos no amolecimento ou em sua recuperação. Os ligamentos são bastante insensíveis e podem ser cortados ou rompidos sem que se sinta, contudo, se tornam bastante dolorosos no segundo ou no terceiro dia, devido à inflamação, da mesma forma que o processo gotoso inflama as articulações em geral insensíveis. 

Estas variações da sensibilidade nos diversos órgãos, como resultado de uma mudança na coesão de seu tecido, são difíceis de conciliar com a opinião geral que defende que a sensibilidade de todos os órgãos depende unicamente dos nervos que entram em sua composição. Este ponto de vista está fundado na experiência que prova que o ser vivo perde o sentimento de um órgão quando seus nervos são seccionados. Barthez afirma que a secção deste nervo irá determinar apenas a interrupção da simpatia entre os nervos do suposto órgão e todo o resto do sistema de nervos, os quais são os principais instrumentos das forças sensitivas. Esta secção levaria à que a sensibilidade deste órgão não permanecesse por muito tempo com a mesma energia. 

Para Barthez, não se pode duvidar de que os nervos sejam extremamente sensíveis, mas ele afirma que certas partes ou órgãos que não possuem nervos também podem ser sensíveis. Dá como exemplo destas partes os dentes, a córnea, o periósteo, as membranas internas aderentes ao crânio, os tendões e ligamentos. Menciona os zoófitos[30], como também os moluscos do mar, formados de uma substância quase que mucosa, que não possuem nervos, mas que se fecham imediatamente quando tocados, e que perseguem e devoram a rapina. Segundo Barthez, estes animais não possuíam sensibilidade, pois não eram dotados de órgãos dos sentidos, mas eram dotados de um senso maior que o tato, e que embora não se pareça com outro senso que conhecemos, lhes proporciona a percepção, o medo e os desejos. (Ibid., 60).

Barthez comenta que as experiências negativas de Haller e seus discípulos, que asseguram que a dura-máter e os ligamentos seriam insensíveis, não destroem as experiências positivas de Le Cat, Lorry, Tandon, Laghi, Mac Neven, Van Doeveren, e outros. Todos os órgãos seriam sem dúvida, suscetíveis de uma sensibilidade que se comunicaria a todo corpo vivo, mas com a diferença principal, de que esta sensibilidade só poderia ser excitada raramente em alguns órgãos, mas constantemente em outros. Mas, principalmente, cada órgão teria sua sensibilidade própria, que seria afetada de um modo variável nos diversos indivíduos, e também devido às diversas causas de irritação.

 

3.6.2 As forças motrizes nos sólidos do corpo

 

No capitulo V, Barthez irá tratar das forças motrizes do princípio da vida nos sólidos do corpo animal. Ele afirma que todos os sólidos do corpo vivo são dotados de forças motrizes. Porém esta força enfraquece a medida que as estruturas se tornam mais e mais sólidas; nos ossos esta força se caracteriza pela nutrição e pela regeneração. 

Os movimentos nos sólidos aconteceriam de duas maneiras: através de um progresso rápido, que nossos sentidos podem perceber, e que Barthez nomeou de “movimento muscular”, ou através de um movimento muito lento, que os nossos sentidos não são capazes de perceber e Barthez denominou de “movimento tônico”. O movimento muscular, embora aconteça principalmente nos músculos, ocorre também em estruturas não musculares, como a íris, os tufos nervosos da língua e intestino, os troncos dos vasos biliares e as trompas de falópio. 

Barthez descreve estes dois movimentos musculares no reino vegetal, ressaltando o fato que o movimento que ele denominou muscular e que é o de progresso rápido aos nossos sentidos, é bem mais raro e limitado nos vegetais. O movimento tônico nos vegetais é responsável pelo pela nutrição e crescimento das plantas. É o que faz a raiz se afundar no solo e o caule crescer em direção ao alto, ou que a planta, suas folhas ou flores, se voltem em direção ao sol. Movimentos espontâneos (dito musculares) manifestam-se em algumas plantas (como nas sensitivas) ou em algumas partes (estigma e estame) de certas flores. 

Barthez afirma que todos os movimentos dos músculos lhes são impressos pela ação imediata do princípio vital que se apresenta a todas as partes vivas das fibras musculares.

Segundo Barthez, seria fácil de conceber que o princípio vital agiria diretamente nas moléculas das fibras musculares, as aproximando, as alongando ou consolidando sua posição fixa, do que imaginar que ele move as fibrilas nervosas ou os espíritos animais à origem dos nervos, “como foi a pretensão daqueles, que com estas duas hipóteses vulgares, acreditaram poder explicar todos os fenômenos dos movimentos musculares”. (Ibid., 69). Neste momento, Barthez está se contrapondo a teoria de Giovanni Borelli (1608-1679) e Haller, contestando a teoria mecanicista de que músculos são dotados individualmente de níveis ou forças matematicamente calculáveis. 

Barthez fornece alguns exemplos como o da força muscular dos músculos envolvidos na mastigação de um leão ou de um tubarão, ou mesmo do estômago (moela) de um pássaro que se alimenta de grãos, bem como dos aumentos prodigiosos que ganham as forças musculares nos estados convulsivos e de delírio violento. Segundo Barthez, “não seria possível que a energia incrível que empreende uma pessoa em estado de frenesi, nasça da vantagem mecânica que sua organização adquire no momento em que estaria na mais absoluta desordem, ou de um poder que sua alma obtenha ao perder sua inteligência e liberdade.” (Ibid., 72).

Barthez deduz que os fatos por ele descritos, demonstram que as forças do princípio vital não são limitadas, e que elas se multiplicam ou cessam de acordo com as condições e segundo as leis primordiais que somente a experiência faz conhecer. As forças que o princípio vital dá aos músculos são equivalentes às resistências que cada músculo deve superar. Foi este, segundo Barthez, o equívoco de Borelli, que quis determinar as forças das fibras do estômago, por comparação destas fibras com os músculos das extremidades. 

Os movimentos de progresso sensível que o principio vital produz nos músculos e em outros órgãos moles, não se limitam aos movimentos de contração, como também aos de extensão e de dilatação.

As forças tônicas são, segundo Barthez, as responsáveis pela animação de todas as partes moles do corpo humano e operam os movimentos cujo progresso não é perceptível, ou que são dissimulados, e que formam entre os diversos órgãos um estado de oposição extremamente variável. 

Barthez reconhece a existência das forças tônicas nos vasos sanguíneos que não possuem fibras musculares, nos tecidos celulares da pele, nas membranas dos vasos secretórios e das vísceras, e nos músculos propriamente ditos. 

Certas situações ou patologias propiciam o aumento das forças de contração tônicas das veias, como nas febres agudas, onde o sangue retirado pelas sangrias jorra com mais força que nos estados naturais. Ou estas forças poderiam estar tão excitadas a ponto de, uma vez aberta a veia, o sangue não sair, até que a contração cesse e a veia relaxe. Barthez narra exemplos semelhantes retirados da experiência de vários médicos, como Baglivi, Haller, Willis, Hipócrates, chegando a seu colega de Montpellier, Bordeu. 

Williams comenta que este estudo das forças musculares tônicas levou Barthez ao único reconhecimento explícito sobre a importância do trabalho de Bordeu para seu próprio trabalho e maneira de pensar: “Bordeu mostrou claramente que a ação das forças tônicas é a causa principal dos movimentos dos vasos excretores das glândulas, e que podem ser apenas ajudados pela compressão dos músculos vizinhos”. (Ibid., 85). Segundo Williams, o desenvolvimento do pensamento de Barthez sobre as forças tônicas deve mais à Bordeu do que Barthez reconheceu, e que mais crédito deveria ter sido dado por Barthez ao colega. Williams relata que certas explicações foram diretamente copiadas de ensaios e livros de Bordeu, como a parte que Barthez escreve sobre a cólica de Poitou, uma doença que Bordeu dedicou muita atenção. (2003, p. 268).

Barthez afirma que as forças tônicas e musculares possuem influência sobre o grau de coesão permanente dos tecidos das partes moles. Aponta também que as afecções nervosas das forças tônicas podem também alterar a força natural de coesão das membranas dos vasos sanguíneos, de modo a causar os aneurismas ou as varizes. Barthez faz uma relação entre estas graves lesões dos vasos sanguíneos com a energia profunda das tristezas e paixões da alma, que estão sempre ligadas com o princípio vital. (Ibid., p.96). Há aqui uma correlação, estabelecida por Barthez, entre uma paixão da alma, uma afecção do princípio vital, e uma patologia.

 

3.7 As forças sensitivas e motrizes do principio vital nos fluidos

 

O capítulo VI é dedicado ao estudo das forças sensitivas e motrizes do princípio da vida nos fluidos do corpo animal. Este é, portanto, o terceiro capítulo dedicado às duas forças do principio vital – sensitiva e motriz. Elas foram estudadas primeiramente nos sólidos do corpo animal, e neste capítulo Barthez aborda a influência destas forças nos líquidos, fluidos ou humores do corpo.

Segundo Williams (2003, p. 268), os argumentos mais impressionantes usados por Barthez em defesa da ação do princípio vital foram retirados deste capítulo sobre os fluidos. Barthez comenta que, embora um sentimento natural pareça ter dito aos povos antigos que a vida está no sangue, e ainda diversos autores tenham falado da vida do sangue e seus humores, um grande número de fisiologistas persiste em acreditar que o princípio da vida não anima os fluidos do corpo, e que só existem sentimentos ou movimentos vitais nos sólidos. (Ibid., p.101). Barthez critica esta visão, determinada pelo hábito de submeter todos os fenômenos do corpo vivo a concepções mecânicas. 

Barthez afirma que só se deve admitir ou rejeitar a presença do princípio vital nos humores após os fatos serem apresentados. Assim ele se propõe a relatar os fatos que levarão a acreditar na influência das forças sensitivas e motoras do princípio vital nos humores.

A sensibilidade do princípio vital nos humores seria imediatamente afetada por todos os remédios energéticos que alteravam “simpaticamente” o movimento íntimo e vital em todos seus fluidos. Mas esta sensibilidade seria mais marcada pelos efeitos de certos medicamentos venenosos como a escamonea[31]. Segundo a observação de Boerhaave e van Swieten, a escamonea causa uma diluição rápida do sangue, por reduzir a serosidade deste e produzir excreções aquosas e com odor cadavérico. Barthez deduz baseado nas observações destes médicos, que se esta planta age por uma impressão venenosa sobre o princípio vital que anima o sangue e os humores. Segundo Barthez, os venenos das cobras também atuam profundamente na sensibilidade do princípio vital, produzindo um relaxamento na união das partes constitutivas do sangue, fazendo com que o sangue dissolvido saia pelos orifícios, como as narinas e até as extremidades dos dedos. (NOUVEAUX ÉLÉMENTS, p. 103-4).

Em relação às provas de existência das forças motrizes do princípio vital nos fluidos do corpo animal (Ibid, p. 104), o movimentos progressivo destes fluidos é sempre produzido e dirigido pela ação muscular ou tônica dos vasos que encerram estes fluidos. Sobre devia-se atribuir à ação imediata do princípio vital sobre os fluidos, os movimentos íntimos que atuam na formação de cada humor, e que fixam a duração de sua fermentação específica.

Williams (2003, Ibid., 268) comenta que pelos anos de 1770, Barthez era contrário ao que era denominado de “química animal”, ou seja, a análise dos fluidos extraídos dos seres vivos. Barthez criticava estes empreendimentos pelo foco dado à ação das “causas físicas” nos fluidos; argumentando que os resultados obtidos com os fluidos corporais em laboratório não tinham validade pelo fato destes não agirem como “fenômenos químicos” (NOUVEAUX ÉLÉMENTS, p. 115-16). Barthez se apoiou na química vitalista de Venel, que depreciava as explicações mecânicas para o calor animal, assim como na fermentação específica vital que Venel atribuiu aos fluidos animais. Venel definiu a fermentação específica como ser capaz de unir compostos análogos e separar componentes heterogêneos.

Através de numerosos exemplos, Barthez percebe nas ações dos humores, provas indiscutíveis da função do princípio vital, que não podia ser limitado por leis da física e agia espontaneamente em defesa da vida. Barthez comenta sobre natureza vital dos humores, que se tornaria ainda mais sensível pelas alterações singulares, recebidas eventualmente, e de forma súbita, através das paixões violentas da alma: “Temos visto as mordidas humanas e animais se tornarem venenosas durante a raiva, embora não fossem assim naturalmente.” Boehaave teria relatado que um acesso de cólera tornou o leito de uma mulher que estava amamentando, venenoso para o bebê. Naquele mesmo instante o bebê que estava sendo amamentado, teria tido um acesso epilético e morrido, em consequência do leite envenenado pela cólera da ama de leite.

Williams (2003, p.268) comenta a respeito de outros casos “clínicos” relatados por Barthez - a mordida de um cão, que só se tornaria virulenta, se a vítima ficasse encolerizada; ou as faíscas que saiam dos olhos de uma pessoa enraivecida - como sendo parte de um catálogo de fábulas estranhas. 

Sem dúvida, este capítulo pode soar especialmente difícil e estranho para os nossos olhos de hoje. Na opinião de Williams (2003, p.268), “este capítulo poderia ser lido como um catálogo de fábulas estranhas em medicina”. Algumas partes são realmente bastante obscuras e algumas explicações podem até nos trazer o riso. Mas o considero uma especial amostra da medicina do século XVIII. Como todos os capítulos, ele possui um método, uma proposta e uma argumentação. Fala em forças, em princípio vital, na influência da medicina mecanicista, na recém nascida análise dos líquidos corporais fora do corpo humano, e trata, principalmente, dos humores, ou seja, da medicina humoral, ainda bastante presente no pensamento vitalista de Barthez, e que ele associou com suas teses vitalistas - como era também na medicina mecanicista - ou qualquer outra doutrina que fizesse parte deste tempo. Todos os elementos estavam apresentados faziam parte pensamento médico do seu tempo, que traz muitos elementos estranhos aos nossos olhos, mas que estavam perfeitamente inseridos na argumentação científica da época.

 

3.8 O calor vital

 

O Capítulo VII trata do Calor Vital. Este conceito, assim como o conceito de princípio vital, das simpatias e dos temperamentos foi trazido de tempos anteriores ao século XVIII, e alguns vieram desde a Antiguidade. Não é do objetivo deste trabalho voltar à origem destes conceitos, trazer sua história e traçar sua evolução. Devido à extensão de cada assunto, isto poderá vir a ser tratado em estudos posteriores. 

Neste capítulo, Barthez não enfatizou aspectos médicos, mas padrões da ação vital encontrados em povos remotos e em diversas espécies animais. Com a intenção de provar que nenhum entendimento baseado na física ou química era possível para explicar a causa última do calor vital, faz uma longa incursão pela literatura de viagens, à busca de exemplos, artifício este que, segundo Williams (2003, p. 269), já havia sido usado para os mesmos propósitos, por Montesquieu e outros filósofos. Barthez utilizou conhecimentos da História Natural, e utilizou relatos que Buffon e outros naturalistas haviam feito sobre o calor nos animais.

 Barthez afirma que o calor vital, assim como qualquer outra espécie de calor, é produzido por um modo particular do movimento do fogo elementar, embora ele diga que não se pode definir exatamente qual o modo do fogo elementar que constitui o calor. Segundo Barthez, o movimento de calor difere daquele da ignição ou inflamação, no que discorda de Stahl, que parece ter acreditado que o movimento ígneo é o mesmo que produz o calor. No movimento da ignição ou inflamação “as partículas de fogo exercem um grande esforço repulsivo e simultaneamente encontram-se concentradas por uma força superior.” (Barthez, 1778, p. 120). Barthez ainda esclarece que as causas ocasionais do movimento de calor produzem uma fricção intima nas partes dos corpos sólidos, e uma agitação interna das partes dos fluidos, principalmente quando estes sólidos e estes fluidos contêm muitos “flogísticos”. Portanto, o calor cresce com a agitação ou fricção dos sólidos e fluidos, ou enfraquece se os sólidos e fluidos fixam seus movimentos. As agitações íntimas dos sólidos e dos fluidos só podem ser produzidas pelo princípio vital, causando excitação, que por sua vez sustentará um calor conveniente. 

Barthez divide o capítulo VII em três seções. Na primeira irá expor a possibilidade do princípio vital, produzir no homem e nos animais, fenômenos relacionados à luz e eletricidade. Na segunda seção trata das leis gerais de calor dos animais, demonstrando a relação com o princípio vital. Na terceira parte deste capítulo, Barthez aborda as diferenças de calor vital em diversos animais e sua relação com a respiração.

Já no início do capítulo VII, Barthez aborda conceitos como fogo elementar, movimento ígneo, corpúsculos de fogo e flogístico[32]. Ele não define estes termos, o que nos faz perceber que eram termos correntes do vocabulário médico-científico de sua época. Como foi dito anteriormente, não é um objetivo deste trabalho analisar estes conceitos, embora possa fazê-lo brevemente mais adiante, na medida em que, de um modo sucinto, o próprio desenvolvimento do trabalho o exija.

Barthez inicia sua exposição falando de insetos que apresentam fenômenos luminosos, como o vaga-lume, à custa de um líquido à base de fósforo. Esta luminosidade é mais forte quando o vaga-lume está excitado e é mais discreta quando ele se enfraquece, apagando-se no momento em que morre. Os felinos e outros animais possuem olhos que brilham à noite, e ainda mais intensamente quando eles agitam os olhos para melhor ver os objetos na escuridão. Barthez também relata alguns exemplos mais curiosos, como o de homens, nos quais o farfalhar da superfície do corpo com a roupa que está em contato com a pele, produz faíscas acompanhadas de ruído, ou até mesmo, chamas com explosão. Tais pessoas possuiriam uma superabundância de ácido fosfórico. Refere-se a certas pessoas que podiam durante algum tempo discernir objetos na escuridão, em consequência de uma luminosidade que sairia de seus olhos. Barthez atribui estas circunstâncias extraordinárias à eletrificação dos órgãos. (Ibid., p. 121). 

Em relação às leis gerais do calor dos animais, Barthez relata que a primeira e mais importante lei a considerar é que o calor animal está sempre a um grau quase constante, o qual não sofre influência se este animal é exposto a intempéries atmosféricas extremas de calor ou de frio. É graças a esta lei que um homem pode viver na Sibéria sem congelar. 

Em seguida, Barthez (Ibid., p.125) cita as “opiniões vulgares” sobre a questão do calor animal, que afirmam que “as fricções causadas pela circulação do sangue, podem produzir um grande aumento de grau de calor acima do grau que estaria a atmosfera”. Barthez discorda da teoria comumente aceita na época (a teoria mecânica) que propunha uma proporção entre a velocidade da circulação do sangue e o calor vital, e afirmou não existir relação certa entre o calor do homem e a frequência ou aumento de seu pulso. Como exemplo, cita outros autores, que através de experiências teriam percebido que um pulso muito rápido nem sempre é acompanhado de um calor muito grande do corpo; ou “experiências cuidadosas” feitas com febres intermitentes e renitentes[33]“onde existem as mais súbitas mudanças na frequência do pulso e que não seriam acompanhadas de proporção constante entre os graus desta frequência e a do calor (febre) consequente à doença”. (Ibid., p. 176). Outro colega teria ainda observado que, em febres muito graves, quando o calor do corpo seria o mesmo ou menor do que na saúde, o pulso poderia estar mais rápido, ou, ao contrário, mais contraído.

Barthez discorda das diversas teorias que não consideram os fenômenos que se opõe à explicação mecânica, sobre o grau do calor de um animal vivo não ser alterado por um calor do ar muito superior ao seu grau, e permanecer o mesmo quando a temperatura atmosférica é média. Este fenômeno foi constatado, segundo Barthez, por uma série de observadores, e ele reafirma estes fatos pela observação através do espaço e do tempo.

Se a quantidade de calor que o princípio vital produz não fosse aumentada em presença de um ar glacial, nada poderia impedir do corpo animal de se resfriar proporcionalmente ao estado do ar que penetra na atmosfera deste corpo, recebido continuamente pela respiração. 

Barthez deduz que se deve atribuir a conservação permanente do mesmo grau de calor natural no homem que permanece por longo tempo exposto a graus extremamente diversos de calor e frio à faculdade do princípio vital de aumentar ou diminuir o movimento do calor nos sólidos e nos fluidos do corpo vivo. Isto se daria pela variação dos movimentos tônicos dos sólidos e os internos dos fluidos, ou seja, pelas leis primordiais do princípio vital.

Depois de ter estabelecido que o calor do homem vivo se conserva a um grau quase sempre constante, Barthez propôs duas outras leis sobre o calor animal: a segunda lei afirmava que todos os seres humanos, independente da idade e do sexo, possuíam aproximadamente o mesmo grau de calor natural, contrário ao que achavam os antigos, de que os idosos eram mais frios. A terceira lei de Bathez sobre o calor vital propunha que o calor natural seria igual em todas as partes do corpo, internas e externas. 

Outro exemplo interessante dado por Barthez foi calcado em experiências e observações de colegas da História Natural, como Buffon, que observaram animais que hibernam, com um termômetro fixado no pelo, no frio de dez graus abaixo do ponto de congelamento. A experiência demonstrou que a temperatura corporal destes animais não se modificava ou se ela se modificava, a diminuição era discreta, de meio ou um grau a menos. 

Williams (2003, p. 269) comenta que Barthez, neste capítulo, tem por objetivo demonstrar que o princípio vital, que se pensou inconstante, era na verdade constante, e que nenhum fenômeno poderia provar isto tão bem quanto o calor animal, que permaneceu o mesmo através de latitudes e mudanças climáticas. 

Através de numerosos exemplos, o princípio vital demonstrou sua independência, sua vigilância e seus recursos. Onde o fenômeno físico-químico era uniforme, ele variava, se fosse necessário. Onde os fenômenos físico-químicos variavam ao extremo, ele permanecia uniforme. Esta verdade só poderia ser conhecida mediante observação dos fenômenos, que ocorreram espaços e tempos variados em diferentes espécies animais.

 

3.9 As simpatias e as sinergias

 

Os Capítulos VIII, XIX, X e XI tratam das simpatias – ou das comunicações particulares – das forças do princípio vital, sensitivas e motrizes, nos diversos órgãos do corpo humano. Estes capítulos ocupam lugar de destaque no NOUVEAUX ÉLÉMENTS, e neles Barthez abordará os vários tipos de simpatias.

Segundo Reill (2005, p. 140), buscando escapar às restrições propostas pelos modelos animistas e mecanicistas, os vitalistas ressuscitaram a ideia advinda desde a Antiguidade, ainda vigente na tradição popular do século XVIII, da “simpatia” ou consenso, para dar conta da conexão e interação entre órgãos de um ciclo organizado. Este conceito permitia aos vitalistas explicarem as ações à distância bem como as reações simultâneas em partes distintas e dispersas do corpo organizado. O animismo explicava a conexão como resultante da ação da alma racional, enquanto os mecanicistas postulavam a necessidade de contato físico para explicar as conexões. 

No capítulo XVIII Barthez introduz os principais conceitos e explicações a respeito das simpatias. Ele diz (1778, p. 142):

 

As forças sensitivas e motrizes do Princípio Vital, que agem em todas as partes do corpo, têm entre elas uma ligação universal que forma a unidade do corpo vivo. Além disso, elas têm, nos diversos órgãos, comunicações particulares e mais fortes, que constituem as simpatias desses órgãos.

 

Neste início Barthez menciona dois importantes conceitos de seu vitalismo. Aborda a ideia de “unidade” do corpo vivo, que se faria através das forças sensitivas e motrizes do princípio vital, que agiriam em todo o corpo através de uma ligação universal. Para além da ligação universal entre estas duas forças constitutivas do princípio da vida, haveria ainda outra espécie de comunicação entre diversos órgãos do corpo, comunicações estas, particulares e mais fortes, que aumentariam ainda mais esta ligação entre os diversos órgãos, complementando a unidade que formaria o organismo humano. Reill (2005, p.144) comenta que “Barthez percebia a economia animal como um equilíbrio dinâmico suscitado pelo jogo de um vasto número de forças que se opunham.”

Duchesneau (1985) comenta que Barthez, para dar conta dos aspectos relacionados à integração da sensibilidade geral, recorreu aos conceitos de simpatia e sinergia. Duchesneau define que o conceito de simpatia, que datava da medicina hipocrática, era entendido, na época de Haller e Boerhaave, como um acordo comum entre vários órgãos no transcurso de alguma doença.

Barthez rompeu com interpretações mecanicistas referentes às simpatias. Para Barthez, as simpatias estavam além da conectividade de estruturas orgânicas. Elas estavam ligadas às forças do princípio vital. As simpatias pertenciam a uma classe de fenômenos que ultrapassavam os limites das atividades relacionadas a processos orgânicos estáveis. Barthez assegura que as simpatias entre os órgãos só podem ser determinadas a partir da observação e que devemos considerar as simpatias como tendo sido produzidas por uma espécie de harmonia pré-estabelecida, ou pelas leis baseadas na natureza do princípio vital:

 

A simpatia particular entre dois órgãos se dá quando um transtorno de um órgão ocasiona sensivelmente e com frequência uma afecção correspondente no outro, sem que essa sucessão possa ser atribuída às leis da mecânica nem a qualquer outra ordem geral conhecida do corpo humano. (Ibid., 142).

 

As simpatias apresentam muitas singularidades, e não se pode dizer com precisão o que é necessário para a produção do efeito simpático a partir da afecção do órgão primitivo, “porque a simpatia entre dois órgãos não é sempre recíproca, porque o efeito simpático não é sempre perpétuo...” (Ibid., 143). As mais notáveis características das simpatias parecem ser sua inconstância e imprevisibilidade. (REILL, 2005, p. 141).

Barthez refere-se a vários autores, entre eles Buffon, que reconheceram a importância das simpatias, mas estes autores não teriam correlacionado estes fatos de forma a concluir cuidadosamente através deles, e formar um corpo de doutrina sobre as simpatias. 

A proposta de Barthez é apresentar um corpo de doutrina sobre as simpatias que se apoiará sempre nas observações, a partir das quais ele formará resultados. Inicialmente ele indicará como se devem reconhecer as simpatias que foram mais bem constatadas entre os diversos órgãos. 

As simpatias de órgãos mais simples, com seus sistemas respectivos, são necessárias para a conservação das forças dos órgãos mais compostos. Ele se propõe a pesquisar sobre as simpatias de cada órgão, simpatias que convergem para produzir o sistema das forças do princípio vital.

Barthez adverte que é necessário observar bem os fatos, para que não se atribua com certeza, a nenhuma outra causa, a mudança de ação das forças que se passa sensivelmente de um dos órgãos a outro. Estas outras causas poderiam ser o acaso, ou seja, ou conjunto desconhecido de causas acidentais – e para se excluir o acaso é preciso que um fato se reproduza com frequência em circunstâncias semelhantes; as causas mecânicas de um órgão sobre outro também devem ser excluídas, e finalmente, é necessário assegurar que a mudança de ação das forças que se passa de um órgão a outro não se deva a um desenvolvimento sinérgico das forças destes órgãos.

Desse modo, Barthez adverte que resultará do conjunto de fatos e de observações, que a conservação da vida está ligada às simpatias dos órgãos, assim como ao mecanismo de funções dos mesmos.

É interessante sublinhar a definição dada acima por Barthez de simpatia: é uma mudança da ação das forças sensitivas que passam de um órgão a outro. 

Em relação às sinergias, Barthez (Ibid., p. 146) afirma:

 

Designo como sinergia, um conjunto (un concours) de ações das forças de diversos órgãos, que cooperam com um determinado órgão para constituir, através de uma ordem de harmonia ou de sucessão, a forma genérica de sua ação particular cuja matriz principal é suposta estar neste órgão, em saúde ou na doença, como, por exemplo, a forma genérica, da excreção ou da inflamação.

 

Segundo Duchesneau (1985), sinergias orgânicas, um conceito usado por Stahl, eram combinações de procedimentos orgânicos, apropriados pela alma, para exercer impulsos e efetuar controle sobre o corpo para o bem da preservação vital. Para Barthez, sinergias era um conjunto de atividades funcionais, normalmente operadas por meio de elaborações orgânicas complexas. Sinergias, para Barthez, dependiam de leis dinâmicas do princípio vital, mas estas leis eram acompanhadas de processos orgânicos relativamente estáveis. Barthez critica Stahl e seguidores por terem se ocupado apenas das sinergias, enquanto deveriam ter considerado as simpatias como decisivas para a análise dos efeitos subordinados ao princípio vital.

Segundo Barthez, os movimentos dos órgãos - nos quais a sinergia é constitutiva de uma função ou de uma doença - poderiam ser modificados de forma expressiva pelas simpatias destes órgãos. Assim, em toda excreção ou inflamação, a natureza age em conjunto (concours) para a produção destas afecções. Tal concurso existe independente das simpatias destes órgãos. Deste modo, Barthez exemplifica que não se deve entender como simpatia particular a relação entre o estômago e os intestinos baseando-se nos movimentos peristálticos destes órgãos, que pertencem à função digestiva. Mas seria um exemplo de simpatia o vômito que ocorre numa inflamação dos rins. A ocorrência do vômito seria um fato causado pela simpatia do rim com o estômago, fato este que se repete e não pode ser atribuído a causas mecânicas, do momento em que o rim inflamado não pode exercer nenhuma tração mecânica no estômago, nem nenhum movimento antiperistáltico nele.

Reill (2005, p.140-1) resume o conceito de Barthez de sinergia: “Barthez define sinergia como um concurso regular de forças que trabalham juntas para manter o corpo organizado funcionando. Sinergias governam processos estáveis.” Porque este concurso controlava fenômenos gerais, ele existia independentemente das simpatias. Segundo Reill (2005), sinergias e simpatias eram básicas para a matéria animada como a gravidade para a matéria inanimada. Elas constituiriam tipos essenciais de reação dentro de um ciclo de organização, simbolizados pelos termos concurso e afeição.

Ainda segundo Reill (2005, p.141), a existência de uma sensibilidade diferenciada em diversos órgãos (cada órgão podia reagir com intensidade variada, quando estimulado de uma maneira específica, devido ao seu grau de sensibilidade) proporcionava o fenômeno da simpatia, porque apenas “coisas similares” demonstravam afeição uma pela outra. Reill destaca que simpatias poderiam ser consideradas análogas às “afinidades eletivas” da química, o que para Barthez e outros vitalistas eram termos correlacionados. Porem, embora similares, as afinidades eletivas não eram idênticas às simpatias, pois estas agiam de forma não determinística, ou seja, afinidades eletivas tendiam sempre ao equilíbrio, e as simpatias nem sempre. Devido às qualidades criativas – no entanto, não determinísticas das afeições simpáticas – as simpatias resistiriam à simples reduções de leis. Os brute-facts das relações simpáticas poderiam na melhor das hipóteses serem classificados de acordo com a sua manifestação. Sua aparição poderia ser observada, mas a razão desta aparição seria sempre apenas uma suposição. Barthez afirma que, para reconhecermos a verdadeira simpatia entre dois órgãos, é necessário que esta se apresente através de uma grande quantidade de fatos variados e a ela relacionados, dos quais ela é a ligação. E não importa se são ignoradas as causas destas simpatias.

Os órgãos ligados por simpatias podem ou não ter relação sensível entre si. Estas relações entre os órgãos podem ser estabelecer através de suas conexões ou segundo sua semelhança de estrutura e de função. 

As simpatias podem ser singulares e individuais, como é o caso relatado de um homem que sentia uma dor pungente no alto do ombro esquerdo quando coçava um ponto abaixo do joelho direito. Mas casos como este estão relacionados à idiossincrasia ou à constituição individual, e não são casos nos quais Barthez irá se deter. 

Barthez, entretanto, afirma que existem simpatias que não podem ser relacionadas a singularidades da constituição individual e que são observadas no estado de saúde e em um grande numero de doenças, entre órgãos que não possuem nenhuma relação sensível entre si. Um exemplo interessante, que não está relacionado a estados patológicos, é a relação simpática existente entre os órgãos da garganta e os órgãos da procriação, que não têm nenhuma relação manifesta, mas que se evidenciam na puberdade com a mudança da voz. Outro exemplo citado por Barthez é o do colo das mulheres, que cresce imediatamente “após os primeiros efeitos dos prazeres amorosos”. (Ibid 151). A seguir, Barthez analisa alguns exemplos deste tipo simpatia - entre órgãos não relacionados sensivelmente - que se tornam evidentes em algumas patologias. Sempre comentando e se apoiando em fatos recolhidos por médicos notáveis, Barthez afirma que o estômago é, dentre todas as vísceras, a que mais se relaciona com outros órgãos com os quais não possui relação sensível. Bianchi entre outros, afirmaram a influência simpática do estômago com órgãos variados, e que o estômago possui uma grande quantidade de nervos que faz com que suas afecções estabeleçam uma simpatia com todo sistema nervoso. E Barthez enumera algumas doenças dos nervos, como a apoplexia, a epilepsia e problemas de visão, cujas causas originais estariam nos males estômago.

Barthez descreve que dentre as doenças, a simpatia particular mais marcada se mostraria na cólica de Poitou[34], e em outras cólicas análogas. Estas cólicas eram acompanhadas de paralisia das extremidades. Barthez relata que as teorias conhecidas tentavam demonstrar que a paralisia era produto da simpatia que os nervos do intestino tinham com os nervos das extremidades; e alguns autores acreditavam que a causa do mal se transportava para as extremidades. Barthez afirma que, em relação à paralisia, esta deveria ser vista somente como “uma afecção correspondente a um ou outro grau de cólica, com variações singulares nos diferentes sujeitos, e cuja causa não é encontrada.” (Ibid., 154). Esta afecção, para Barthez, deveria se manifestar quando o espasmo que ocupa uma parte do intestino se transmitisse à outra parte do intestino que estaria relaxado e que a queda das forças tônicas da parte relaxada se transmitiria às extremidades. Esta diferença conceitual tinha como consequência uma outra proposta de tratamento, que não era aquela vigente: ao invés de tratar os nervos abdominais ou as extremidades, Barthez propunha, ao contrário, tratar da causa das cólicas e trabalhar para que se restabelecesse o estado natural das forças constantes assim como da normalização das funções do intestino. Este era, para Barthez, o método mais seguro para dissipar estas paralisias das extremidades.

Simpatias particulares também podiam envolver órgãos que possuíssem semelhança em sua estrutura e funções e que estivessem em simetria ou em paralelo nas metades verticais ou laterais do corpo. Barthez cita como exemplo pessoas que desenvolvem cálculos ou inflamação em um dos rins e depois o outro lado também é afetado pela mesma patologia. O mesmo acontece com os olhos, quando nas pessoas com oftalmias, a inflamação passa de um olho ao outro. Barthez cita também exemplos funcionais, de comunicações simpáticas das forças motrizes entre membros simétricos; quando um membro adquire o hábito de um determinado movimento, o outro membro contralateral pode se tornar apto a realizar o mesmo movimento, sem ter tido o hábito. 

Barthez aborda em seguida as simpatias entre órgãos que não estão situados simetricamente nas metades verticais e laterais do corpo, mas que possuem semelhança em estrutura e função, e embora possam estar bem distantes entre si, ainda assim possuem uma simpatia particular. É o caso do tecido celular, da pele, das cadeias de gânglios, e dos órgãos secretores de humores análogos. Para explicar esta simpatia, Barthez se utiliza de um conceito corrente na medicina de seu tempo, denominado de metástases, que ele explica “como a transposição dos humores mórbidos de uma parte onde elas estavam fixadas para uma outra parte onde são depositadas”. (Ibid., p. 161). Havia metástases que se deviam à ações mecânicas e estas não tem relação com as simpatias. Porém, existem metástases nas quais os humores mórbidos se projetam sobre uma região do tecido celular que simpatiza fortemente com a região que este humor tinha se acumulado, ou seja, metástases cuja principal causa é a simpatia entre as partes mais distanciadas do tecido celular. 

Barthez cita a experiência de um colega, Lieberkuhn (Ibid.,162), que procurava tratar de um edema de pulmão, tentando criar uma metástase artificial, o que consistia em fazer com que, através de escalda-pés, a água acumulada nos pulmões se dirigisse para as extremidades, as quais ele trataria posteriormente com remédios fortificantes. Barthez explica esta prática: “o tecido celular, uma vez enfraquecido e infiltrado pela água dos banhos mornos, recebia uma afecção muito parecida à do tecido celular do pulmão embebido de serosidades.” 

A pele de todas as partes do corpo também possuía uma afinidade simpática. As cadeias ganglionares também possuíam simpatia entre si, e, como exemplo, Barthez cita um caso de Willis (Ibid., 164), que percebeu que a compressão forte demais dos gânglios inguinais produziu formação de tumores escrofulosos no pescoço e atrás das orelhas, o que torna evidente, segundo Barthez, que qualquer explicação mecânica seria equivocada.

Órgãos que participam de uma mesma função têm uma simpatia particular, como é o caso dos órgãos ligados à digestão, o que foi demonstrado por vários exemplos. (Ibid., 165). Uma inflamação que se limita ao estômago pode impedir a deglutição. A digestão dos alimentos que ocorre no estômago é paralisada quando o intestino é ferido. No caso, vêem-se os alimentos sendo expulsos pela boca, ou saindo pela ferida sem terem sofrido nenhuma alteração.

O útero e as mamas, também teriam uma simpatia particular. Barthez explicava este fenômeno por serem órgãos que secretam humores análogos (seroso e leitoso). As mamas incham na puberdade e na supressão da menstruação. Parece a Barthez que esta simpatia seria fortalecida pela sucessão que se repete entre suas funções, o que aconteceria também com outros órgãos, quando causas acidentais estabelecem duas ou três sucessões de afecções entre órgãos não simpáticos, fazendo com que estes órgãos adquiram o hábito da correspondência. (Ibid., 165-166).

Barthez faz menção de que a simpatia entre a garganta e os órgãos da procriação, pode se dar igualmente devido a secreções de humores de natureza mucosa. Barthez sugere que a simpatia entre estes órgãos propicia a sucessão, que, com frequência, se observa nas doenças venéreas, entre as lesões desses diferentes órgãos, o que confirma a maior afinidade do vírus venéreo com os humores mucosos.

Por fim, Barthez aborda as simpatias entre órgãos que possuem entre si conexões particulares. Ele observou uma forte simpatia entre órgãos vizinhos que são estreitamente ligados por um tecido intermediário. Assim, por exemplo, o colo da bexiga e o reto simpatizam a ponto de o tenesmo e a dificuldade de urinar ativarem-se mutuamente. Simpatias entre membranas contínuas podiam proporcionar fenômenos como as dores e coceiras na glande causadas pelo cálculo da bexiga ou cólicas em todo ventre causadas por uma dentição difícil. 

Barthez também distingue as simpatias das forças do princípio vital nos órgãos similares que estão ligados em seus sistemas particulares ou nos vasos sanguíneos e nos nervos. Os vasos sanguíneos e os nervos poderiam apresentar dois tipos de simpatias: aquela que liga um nervo ou um vaso ao outro e também a que liga um vaso ou um nervo ao seu sistema.

A seguir Barthez analisa a relação existente entre a conservação da função de cada órgão à integridade das simpatias de seus nervos e seus vasos sanguíneos com seus respectivos sistemas. 

Segundo Williams (2003, p. 270), “Barthez insiste que as simpatias não são dependentes de estruturas materiais, mas, ao contrário, manifestam as ações do princípio vital, que responde livre e sutilmente às exigências da saúde e da vida”. Barthez usa observações de William Cullen (1710-1790) que relatou um caso no qual os desejos sexuais intensos levavam a espasmos intestinais agudos, ou a ação afrodisíaca de uma semente mediterrânea (pimenta rosa), que agia por meio de uma espécie de orgasmo comunicado dos intestinos às partes sexuais. Por meio deste exemplo, Barthez aponta que esse tipo de conhecimento é o único possível aos médicos sobre as simpatias, do momento que sua causa original – e oculta – permanece desconhecida:

 

Nós não conhecemos as causas primitivas das simpatias entre os nervos ou órgãos do corpo humano, mas é suficiente que estas ligações entre forças, que são resultantes de forças ocultas, se manifestem por numerosos fatos. (Ibid., p. 182).

 

Barthez expôs até aqui as simpatias particulares que os diversos órgãos mantém entre si. Tratará então das simpatias que as forças de cada órgão têm com as simpatias de todo o corpo. Antes de iniciar esta parte, ele alerta para que não confundamos as simpatias com as influências que os principais órgãos têm com o resto do corpo - e esses órgãos seriam, na opinião de Barthez, que apresenta também a opinião de Aristóteles, van Helmont, e dos Modernos -, o coração, a medula espinhal e o diafragma ligado ao estômago. Aristóteles creditava ao coração a sede do princípio da vida. Van Helmont e seus seguidores acreditavam que a sede deste princípio se encontrava na região epigástrica, que possuía segundo estes uma sensibilidade singular através da influência nesta região da Alma pensante. Barthez argumenta que as fortes impressões que a alma provoca na região epigástrica se devem a forte sensibilidade, que concentra nesta região a simpatia dos três órgãos mais importantes, e vizinhos a esta região. Ele admite que estes órgãos principais tenham influências mais fortes sobre o resto do corpo, mas que isto não se devia às simpatias destes com os outros órgãos, mas sim pelo conjunto das funções vitais. Depois deste esclarecimento, Barthez se propõe a tratar apenas das alterações consequentes das forças ativas em todo corpo com as simpatias das funções de cada órgão. Ele afirma que uma parte pode simpatizar com o todo, de forma que a afecção desta parte afetará o princípio vital nas forças que este produz em todos os órgãos.

 

3.10 O sistema inteiro das forças vitais - as forças ativas e radicais

 

O capítulo XII é o último que aborda as forças do princípio vital. Desta vez Barthez trata do “sistema inteiro” das forças do princípio vital e das alterações essenciais que podem afetar este sistema. 

Ele nos apresenta duas novas forças, que ele denomina de forças ativas e radicais. As forças que o princípio vital produz a cada instante, em todos os órgãos, segundo esteja determinado por causas internas ou externas, Barthez denominou de forças ativas, Ele distinguiu estas forças das forças radicais que este princípio tem em potência, para continuar o emprego das forças ativas.

Barthez adverte que não podemos perceber o sistema de forças do princípio vital como concebemos o sistema de forças mecânicas que só apresenta um determinado tipo de força, que atua por um período limitado de tempo, seja para fazer o equilíbrio, seja para produzir um movimento visível. 

As forças radicais estão ligadas, segundo Barthez, à variação que cada órgão apresenta quanto à sua renovação, crescimento, diminuição, e estariam em potência, agindo quando fosse necessário. 

Barthez faz então uma afirmação fundamental a todo o seu pensamento vitalista, onde expressa sinteticamente importantes conceitos: “O conjunto, ou melhor, o agregado das somas das destas duas forças (ativas e radicais), constituem o que eu chamo de o sistema completo de forças do princípio vital” (Ibid., p.246).

Barthez utiliza expressões que embora trouxessem alguma lembrança ou relação com as ideias mecânicas, principalmente newtonianas - como “agregado” e “soma” –, ele concomitantemente, propõe que estas forças funcionassem em “conjunto”, como em um “sistema completo”. Ao propor uma interação dinâmica e constante das forças deste sistema, ele institui uma diferença fundamental com a doutrina mecanicista. Relações recíprocas se tornaram uma das principais definições de um corpo organizado, ou seja, tudo que estava contido em um corpo organizado estaria relacionado a tudo mais deste corpo. 

Reill (2005, p. 138) comenta que esta definição de “agregado vivo” utilizada por Barthez na definição de sistema inteiro, era um conceito que outros vitalistas também utilizavam, como Dumas, Bordeu e Buffon. A misteriosa combinação de como um “agregado” se tornava um “agregado vivo”, ou na definição de Goethe, como a junção de elementos individuais constituiria um todo, ou “como” esta conjunção ocorria e “por quê”, era considerado um mistério, e entrava na categoria das qualidades ocultas. Na misteriosa combinação que constituía um corpo organizado, cada parte individual perdia sua vida específica para viver como um todo, e contribuir com sua parte individual para a soma total da vida. Reill aponta que este conceito era difícil de definir, pois focava na questão de como um agregado se tornava um corpo coletivo. Esta questão era a mesma colocada por Rousseau (1712-1778) no Contrato Social (1762) e que, segundo Reill, teria se inspirado nas ideias vitalistas de Bordeu ou Buffon. 

Este conceito, portanto, que definia um “corpo vivo”, ou um “agregado vivo”, era um conceito que estava presente em diversas áreas, humanas, filosóficas e científicas do século XVIII. 

Reill (2005, p. 139) complementa ainda que oximoros como “agregado vivo” e “máquina animal” ou “homem máquina” (l’Homme Machine[35]), constituíam um campo linguístico formado de elementos opostos que incorporavam o ideal do vitalismo iluminista. Estas expressões eram análogas a termos como “soma” e “relações recíprocas”, e autorizavam a afirmação que cada “indivíduo” em um “sistema vivo” possuía um papel de participante ativo, enquanto simultaneamente mantinha sua única e própria vida.

Tal sistema inteiro poderia ser afetado por dois tipos de alteração, seja pelo efeito direto das lesões de cada órgão, seja indiretamente pelas simpatias de um órgão particular com todo o corpo. 

Barthez anuncia uma lei fundamental que diz que a energia do sistema de forças do princípio vital se produz em cada homem na constância da sucessão e das relações naturais de atividade – direta ou simpática – de todas as funções. 

A ação de cada órgão em particular poderia aumentar ou enfraquecer as forças radicais de todo um sistema, de acordo com a mudança simpática que ele determina nas forças ativas de todo o corpo, assegurando ou perturbando essa ordem constante da sucessão e das relações de atividades das funções. 

Quando um órgão sofre, por um longo período de tempo, alterações extremas, em excesso ou em falta (como um espasmo ou uma paralisia), a lesão desse órgão perturba de várias maneiras a ordem natural e usual das funções que estão relacionadas com as forças radicais. Portanto, as alterações que se produzem diretamente ou indiretamente, no sistema inteiro das forças do princípio vital, podem ser passageiras ou pouco consideráveis; mas quando elas são profundas ou duradouras, elas atacam as forças radicais, o que produz um prejuízo essencial a todo sistema.

Segundo Duchesneau (1985), as forças ativas estão conectadas a atividades orgânicas específicas. Elas operam em circunstâncias normais e adequadas, e como resultado de um estímulo específico. As forças radicais são as que proporcionam a atividade (fisiológica) de integração das forças ativas bem como se encarregam dos processos reguladores e da harmonia dinâmica do corpo.

Reill (2005, p. 141-2) observa que Barthez dividiu as simpatias em quatro tipos, que podem ser agrupadas em dois pares. Ele caracterizou o primeiro par segundo a maneira nas quais os órgãos simpáticos estão conectados e diferenciados entre si. O segundo par se caracterizaria pelo seu grau de especificidade e seu tipo de ação. No primeiro par, a conexão seria direta, mediada ou análoga. Em relação às conexões diretas ou mediadas, os órgãos simpáticos estariam interligados fisicamente ou ligados por um terceiro elemento, em geral o tecido celular. A irritação de um órgão passaria para outro órgão ligado a ele por linhas físicas de comunicação, embora, não em direta proporção ao estímulo original, nem em ordem sequencial, do momento que as simpatias são igualmente simultâneas e recíprocas. Portanto, a natureza do órgão determina suas reações, seu grau de sensitividade e o tipo de afecção que eles experimentam. Embora este entendimento fosse similar a conceitos mecanicistas, o sistema de simpatias diretas ou mediadas ainda demonstrava características desconhecidas à doutrina mecanicista.

Ainda sobre a maneira como os órgãos estão conectados, Reill comenta sobre o segundo tipo de conexões simpáticas, ainda relacionadas ao primeiro par, onde os órgãos se relacionariam simpaticamente pela analogia ou similaridade de sua estrutura ou função. Quanto maior fosse a semelhança em estrutura, ou função, maior a simpatia. 

O segundo par estabeleceria novas relações, de intensidade momentânea, para reagir a mudanças, internas ou externas, dentro do ciclo de organização. O princípio vital geral governa as forças ativas que ele põe em ação a cada momento, em todos os órgãos, independente se o estimulo simpático é externo ou interno. As forças radicais dirigem as forças ativas para propósitos específicos. As forças radicais estão aptas a aumentar, modificar, diminuir ou mesmo redirecionar as forças atuantes em geral, tornando o sistema dinâmico e adaptado às condições e mudanças específicas do momento. Este conceito dinâmico e adaptável das forças do princípio vital é bastante diverso do conceito de forças mecânicas, que agem apenas durante certo momento, de forma estável. A soma das forças ativas e radicais constituiria um sistema no qual uma combinação complexa era formada entre sinergias e entre simpatias particulares e gerais, enquanto o corpo organizado respondia criativamente a estímulos internos e externos. 

Embora Barthez se tenha recusado a especular sobre a origem e natureza do princípio vital, integrando-o à categoria de forças ocultas, ou faites-principes, ele buscou definir suas qualidades. Embora o princípio vital fosse de natureza unitária, o conjunto ou o agregado da soma de suas forças ativa e radicais eram o que constituía sua atividade e formavam o que ele denominou de “sistema inteiro ou completo” ou système entier das forças do princípio vital. 

 

3.11 A doutrina dos temperamentos segundo Barthez

 

Os dois últimos capítulos, XIII e XIV, tratam dos “Temperamentos”. No capítulo XIII, Barthez apresenta e discute o conceito e os métodos para se conhecer os temperamentos, “pois, embora todos os médicos tenham percebido a importância da doutrina dos temperamentos, tal doutrina ainda não parece ter sido apresentada por seu verdadeiro ponto de vista.” (Ibid., 283).

Barthez discorda da divisão clássica, cunhada na medicina antiga, da classificação dos seres humanos em quatro temperamentos, segundo a qual os temperamentos sanguíneo, bilioso, atrabilioso, e linfático seriam uma superabundância de um destes humores. Barthez pondera que, apesar da possibilidade da superabundância relativa (e não raro pouco marcada) de um humor causar certo efeito sensível, esta superabundância seria apenas uma das afecções constantes no conjunto de determinações do temperamento. 

Barthez defende, ao contrario da classificação em temperamentos fixos, a existência do temperamento próprio ou individual de cada homem, chamado de idiossincrasia, que só poderia ser conhecido por aproximação. Este estudo, embora infinitamente importante para a prática da arte de curar, estaria acima da capacidade do espírito humano, pois abarcaria objetos por demais complexos e diversos. Existiriam singularidades idiossincrásicas ou temperamentos individuais muito distantes da ordem comum, que se manifestariam através das simpatias, e que só poderiam ser descobertos pela experiência. 

Barthez propõe dois métodos, para conhecermos, “o tanto que for possível” (Ibid., 285) o temperamento em cada homem – ou a forma especial que resulta as afecções constantes do sistema de forças de seu princípio vital [36]. Os métodos são o direto e o indireto, os quais deveríamos empregar para conhecer o tanto quanto possível, o temperamento individual, ou “a forma especial que resulta das afecções constantes do sistema das forças de seu princípio vital”. (Ibid., 285). 

Depois de expor os métodos diretos e indiretos para se conhecer os temperamentos em cada indivíduo, Barthez afirma que o princípio vital deve ter nos homens que habitam o mesmo país, formas que lhes são comuns, nas quais podemos observar semelhanças singulares em suas compleições físicas e nos seus hábitos ou costumes (moeurs). Barthez chama estas modificações no temperamento do princípio vital em cada lugar da Terra, de modificações “endêmicas”, que possuíam correspondências que não poderia ser ainda exatamente estabelecidas com a temperatura do ar, o clima e o sol. Segundo Barthez, estas correspondências tinham sido vistas até agora com imperfeição, e ele promete uma nova visão do assunto. Portanto, na terceira seção deste capítulo, Barthez expõe suas observações sobre as relações do temperamento com as causas gerais que modificam os costumes (moeurs) e a aparência (physique) do homem nos diversos lugares da Terra.

O método direto consiste em duas partes: primeiramente tem como objetivo primeiramente reconhecer em cada homem, através de “observações suficientes”, qual é, em estado de saúde perfeita, a intensidade constitucional ou energia permanente das forças radicais do princípio vital em todo corpo e nos diversos órgãos; em segundo lugar, consiste em saber quais são as modificações que o poder do hábito no uso das coisas ditas não-naturais[37]provoca nas forças ativas do princípio vital. 

Em relação à primeira parte do método direto de se conhecer o temperamento individual, temos que determinar em cada homem, a intensidade constitucional das forças radicais, ou a energia permanente das forças radicais. Barthez descreve que é fácil perceber a falta desta energia, quando a ação das forças sensitivas e motrizes encontra-se enfraquecida em todo o corpo. Seria comum nas pessoas que se encontram com tais forças enfraquecidas que elas apresentassem sinais de excesso de sensibilidade e irritabilidade. Um excesso de sensibilidade se manifestaria por uma vivacidade desproporcional de sensações e de apetites naturais (que não deveriam ser relacionados à alma exclusivamente, mas também ao princípio vital), ou por um forte sentimento de ansiedade ou incômodo que prejudicasse alguma função como, por exemplo, um excesso de mobilidade em uma parte enquanto a outra se mostrasse vagarosa, como uma pulsação acelerada e um intestino lento. 

Durante o enfraquecimento das forças radicais, quando a sensibilidade e a mobilidade estão excitadas, as simpatias particulares entre os órgãos, se mostram mais evidentes que as simpatias do órgão acometido com o todo. Uma digestão laboriosa em uma pessoa que está com as forças radicais enfraquecidas, poderia causar reações simpáticas em órgãos distantes, como palpitações no coração ou contração nos testículos. 

A energia das forcas radicais de cada constituição depende da atividade e regularidade das funções. É por este motivo as pessoas do povo, as mais pobres, e os homens do campo, não possuem todo vigor que lhes é equivocadamente atribuído. Devido à nutrição deficiente e ao excesso de trabalho pesado constante, eles possuiriam uma fraqueza em sua constituição que seria transmitida à sua geração, e eram acometidos por doenças muito graves e chegariam raramente à idade avançada. Por este motivo, suportariam mal as sangrais e as purgações. 

Após haver determinado individualmente qual é a energia das forças radicais da constituição em cada homem, seria preciso determinar as proporções que possuem entre si as forças dos diversos órgãos. Seria também necessário observar quais os órgãos mais fracos em relação ao resto do corpo, cuja imperfeição levaria a diversas afecções constantes, características de cada temperamento. Barthez relata que Thierry teria observado, em cada homem, a existência de um órgão no qual faltaria em relação aos outros órgãos, o grau de energia que ele deveria ter no estado de saúde perfeita. Esta afirmação teria sido verificada por Zimmerman que afirmava que este órgão mais fraco seria o acometido pelas fortes emoções da alma. Hipócrates já havia observado que as enfermidades epidêmicas se assentavam nos órgãos mais fracos dos doentes. Baillou afirmou que as doenças se localizavam nas partes mais cansadas pelo uso habitual no trabalho. (Ibid., p. 291-2). 

Passando ao segundo objetivo do método direto de conhecer o temperamento, Barthez vai observar quais são as modificações que os diversos hábitos no uso das coisas não naturais ocasionam nas forças sensitivas e motrizes do princípio vital. Entre os não naturais, Barthez vai comentar sobre o ar, os alimentos e o exercício. Um ar ruim pode ter se tornado tão habitual para uma pessoa, que, quando removida para um ar puro, esta pessoa corre o perigo de adoecer gravemente, se suas forças estiverem abaladas por longa doença ou velhice. Pessoas com o hábito de se alimentar de comidas pesadas ou alimentos de digestão difícil podem ter a necessidade de ingerir este tipo de alimentos quando acometidos ou convalescentes de uma doença grave. Pessoas acostumadas a certo tipo de movimentos específicos mais fortes podem ter dificuldade em exercer movimentos que necessitem menos força.

Em relação ao método indireto para se conhecer o temperamento, Barthez tem como objeto determinar em cada pessoa o grau das forças radicais, e os modos das forças ativas do princípio vital, segundo a observação sobre os costumes, como também sobre o estado da constituição física dos fluidos e dos sólidos que em geral têm relações harmônicas permanentes com o sistema de forças. Ela vai indicar brevemente, através de analogias, a relação que os costumes, e a constituição física dos sólidos e fluidos, possuem com a maneira de ser mais constante do princípio vital em cada homem. 

Barthez inicia, citando Stahl, que entendia que a atividade manifestada na alma de uma pessoa, em seus pensamentos e em sua vontade, seria proporcional a atividade dos movimentos vitais, assim como a inquietude de um indivíduo se encontraria em seus movimentos. Galeno teria sido o primeiro autor deste dogma, em seu tratado Quo Animi Mores Sequantur Temperamentum Corporis. Barthez, entretanto, contesta este dogma, argumentando que nem sempre existiria correspondência entre a alma e o princípio vital. Um homem com todos os sinais de temperamento melancólico poderia não apresentar uma alma melancólica. Porém, Barthez argumenta que, embora esta relação pudesse perder sua natureza, em geral “existiria um acordo singular das ações morais com os movimentos vitais, quanto ao tempo, à ordem, e à proporção, nos diferentes temperamentos, em ambos os sexos, e nas diversas idades.” (Ibid., 299). 

A seguir, Barthez faz um breve estudo, em cada pessoa, da constituição dos sólidos e dos fluidos do corpo. Primeiramente, Barthez chama atenção para a frequente correspondência entre os estados fixos dos sólidos e a disposição dos fluidos quanto a superabundância de um dos humores, disposição esta que ele crê serem constituintes dos quatro temperamentos universais. Então, por exemplo, as fibras seriam esponjosas nos indivíduos de temperamento sanguíneo; secas e elásticas nos biliosos; mais tenazes nos melancólicos e frouxas e moles nos indivíduos de temperamento fleumático. Os tratamentos deveriam seguir de acordo com a diferença de constituição de cada sujeito, pois um banho frio, que seria saudável para um sujeito com as fibras moles e frouxas, seria nefasto para um indivíduo magro, com as fibras secas. Por fim, Barthez comenta sobre a existência de outro estado de fibras que formariam pessoas de constituição delicada, descrita por Huxham, onde os indivíduos teriam mais espírito que força e seriam sujeitos a hemorragias e a consumpção. Barthez relata que Stahl já havia descrito esta constituição e a denominado de sensibilidade viciosa. Stahl chamou atenção para o fato de que esta sensibilidade viciosa não aconteceria somente em indivíduos cujos tecidos eram muito delicados, mas também em homens fortes, mas cujo vigor teria sido corrompido por uma vida muito afastada da natureza. Pessoas com a constituição muito delicada não teriam vida longa, mas, em certos casos, esta constituição sensível poderia ser útil, porque, diante de doenças muito violentas, essas pessoas delicadas muitas vezes respondiam melhor que sujeitos muito mais robustos. Mudanças muito violentas provocariam nestes homens robustos, pressões muito mais fortes relativamente, que nos sujeitos delicados, que já estariam habituados a constantes alterações em sua saúde. (Ibid., p. 301).

Por fim, Barthez aborda as influências ambientais sobre o temperamento, ou seja, as relações do temperamento, em lugares diversos da Terra, com as causas gerais que agem sobre o físico do homem e seus costumes. Barthez diz: “(...) vemos que o princípio vital deve ter nos homens que habitam um mesmo país, as formas que lhes são comuns, pois percebemos semelhanças singulares em suas compleições físicas como também em sues costumes.” (Ibid., p.286).

 Williams (2003, p. 273) afirma que Barthez ao comentar sobre a influência do ambiente no temperamento, estava em grande parte se inspirando no clássico tratado de Hipócrates, Ar, Águas e Lugares, e estaria trazendo conceitos antigos, com uma nova abordagem.

Segundo Barthez, as formas do temperamento são endêmicas aos indivíduos de um país ou lugar e têm relações marcadas com as causas gerais que modificam variadamente o físico do homem e seus costumes nos diferentes lugares da Terra. As chamadas causas gerais seriam de duas ordens, as de ordem natural e as de ordem política. 

As causas naturais são o clima, ou seja, sua latitude, que é a distancia de cada lugar do Equador, mas também sua altitude, sua distância do mar, seus ventos, a natureza de seu terreno e as exalações que emanam de seu interior. 

O clima teria uma influência direta sobre o tamanho dos homens, o que seria perfeitamente perceptível quando se observa homens de latitudes muito diferentes. Barthez ressalta que os homens de clima mais quente são menores do que os que habitam próximo às regiões mais frias. O grau de frio mais favorável ao desenvolvimento do corpo humano estaria nas latitudes vizinhas da zona glacial do norte, porém estas regiões têm um limite bem marcado, pois um discreto aumento de frio, embora bem perto desse limite, produziria uma forte diminuição do crescimento natural do corpo humano. 

Entretanto, a influência que o clima teria nos órgãos externos é menos importante que aquela que ele exerceria sobre as formas internas da constituição. Esta influência do clima nas partes internas se manifestaria através de afecções muito diferentes que os povos do norte e os povos do sul apresentam. Barthez critica as explicações dadas por seus colegas e defende que é preciso olhar para estes acontecimentos como um fato geral que não pode ser demonstrado por razões físicas, mas que é fruto da observação. Entre os habitantes dos países quentes, comparados aos dos países frios, as forças radicais estariam constantemente em estado de langor relativo, mas, no entanto, o exercício das forças ativas se desenvolveria nestes povos com mais vivacidade. Isto poderia ser percebido no fato da sensibilidade ficar mais comovida nos países quentes, o que explicaria o motivo pelo qual seria maior o uso de narcóticos e de bebidas temperantes nestes países. Ao contrário, nos países frios, se usaria mais os drásticos e os remédios mais ativos - a ponto de, em certos povos, serem usados com sucesso, remédios que para outros povos seriam venenosos, como o caso do óleo do tabaco nos lapônios, que se situam nos últimos graus de frio permitidos à nossa sensibilidade. Os povos que ocupavam os lugares mais frios na Terra, necessitavam de remédios violentos para comover sua constituição, pois segundo Barthez, “parece que um véu de matéria mais espessa tornaria o princípio vital destas pessoas menos acessível” (Ibid., p. 306). Da mesma maneira, nos climas ardentes, as febres seriam mais agudas que nos climas temperados, e desencadeadas com mais facilidade. Galeno já teria observado que os povos de pele negra possuem o pulso mais vigoroso e acelerado e a pele mais aquecida.

Barthez observa que existe também uma analogia singular da influência do clima quente sobre as forças radicais e ativas da constituição em relação os costumes, cujas características seriam aparentemente opostas. Como exemplo desta aparente contradição, Barthez cita os indianos, este povo que possui “uma timidez natural e uma coragem necessária para certas ações atrozes”, como o costume das mulheres serem queimadas após a morte de seus maridos. (Ibid., 307).

Barthez percebe uma analogia entre o maior langor das funções dos órgãos dos sujeitos nos países mais quentes em oposição a uma maior tendência às doenças e febres agudas e às convulsões, e o fato da alma ali ser mais tímida e ao mesmo tempo mais suscetível a ações atrozes. 

A natureza do terreno, assim como a exposição às águas e as exalações da terra também seriam causas gerais e teriam influência, tanto nas formas externas e as formas interiores do corpo, como no temperamento, em diferentes povos. Como exemplo, o povo da Rússia, onde as pessoas seriam todas muito semelhantes (com o mesmo tamanho, as mesmas paixões e o mesmo modo de pensar), teria tal uniformidade devido à natureza do terreno da Rússia ser formada por imensas planícies. 

Por fim, são abordadas a ação que as causas políticas têm sobre os costumes e o espírito dos povos, quer ajam sozinhas quer em conjunto com as causas naturais. Segundo Barthez, a natureza do terreno, quando influi na maneira de viver de um povo, pode se tornar uma forte causa política, ou até acarretar, nos costumes desse povo, uma forma independente ao governo ao qual está submetido, tal como, nos povos nômades, a liberdade é resguardada por seus desertos.

Assim, como assegura Williams (2003, p. 274), Barthez, nos dois últimos capítulos dessa obra, insiste que as verdades da medicina vitalista não se aplicam somente a indivíduos, mas também aos agregados humanos – países, raças, civilizações, gênero e idade. 

Portanto, Barthez não apresentou apenas um determinismo unilateral, de causas físicas - ar, água e terra - operando sobre a maneira de viver, mas percebeu analogias, reciprocidades e correspondências que provariam a existência de uma rede inextricável de causas físicas e morais nas maneiras de ser do princípio vital. Barthez estendeu para o contexto da cultura e da política os limites do princípio vital. Estes limites não poderiam ser estabelecidos de maneira exata, sua extensão e poder poderiam ser percebidos apenas através da experiência, através da observação de casos e julgado por observadores que não prestassem atenção a um grupo isolado de casos, mas sempre ao conjunto de fenômenos relacionados ao funcionamento do principio vital. 

 

3.12 O PrincípioVital segundo os estágios da vida

 

No capítulo XIV, o último capítulo da edição de 1778, Barthez examina as relações do princípio vital com os “estágios da vida”. Irá considerar as modificações que as diferentes idades e a diferença de sexo irão produzir no sistema de forças do princípio vital, afecções estas que também constituem os temperamentos, bem como irá tecer considerações sobre o que ocorre, em sua opinião, com o princípio vital por ocasião da morte do homem.

 

Entre as afecções constantes cujo conjunto especifica em cada homem o sistema das forças do princípio vital estão as modificações que ele recebe nas diversas idades e cuja única sucessão deve levar a uma necessidade natural da destruição do sistema. (Ibid., 314).

 

Barthez também propõe uma nova divisão das idades para a vida humana, analisando os períodos segundo o índice de mortalidade. Ele distingue, baseado na tabela de mortalidade, quatro períodos, respectivamente. O primeiro seria entre 0 a 12 anos, onde a mortalidade diminui ano a ano. A partir da puberdade, que ele denominou período da juventude, haveria um pequeno aumento neste índice até um novo período, Depois deste período haveria o que ele denominou de l’âge consistant. Ele descriminava dois destes períodos, que variavam, dependendo da tábua consultada, mas que em média ia dos 30 aos 50 anos. Neste período as mulheres morreriam menos, em relação aos homens de mesma faixa. A partir dos 50 anos começa um novo período, que caminha em direção à velhice, onde a mortalidade iria sempre crescendo, em ambos os sexos, com uma diminuição de ritmo em determinada faixa.

Segundo Barthez, as forças ativas do princípio vital são modificadas a cada idade e pelas relações diversas de suas atividades nos diferentes órgãos, que estão desigualmente desenvolvidos e pelos diferentes modos segundo suas ações são graduadas. Nas diferentes idades, as forças que o princípio vital exerce nos órgãos possuem relações variáveis de atividade. Barthez exemplifica com as hemorragias, que são mais frequentes nos primeiros anos da vida no nariz ou parte superior do corpo, e na idade mais avançada na parte inferior, com os sangramentos uterinos ou hemorroidais. 

Na infância, as forças ativas possuem um modo precipitado ou rápido, e pouco regular. Na adolescência, estas forças seriam um pouco menos rápidas que na infância, mas mais regulares. Na idade consistente (l’âge consistant), o ritmo das forças é mais regular e mais lento. Na velhice, a ação das forças é muito lenta e regular, mas menos regular que na idade consistente. Assim, “o máximo de velocidade das forças ativas acontece na infância e o máximo de regularidade de sua ação é cerca da idade consistente.” (Ibid., p.323). 

Barthez exemplifica esta afirmação de várias maneiras. Nos primeiros anos da infância, enquanto a vitalidade aumenta, as funções dos órgãos vitais se executam com extrema rapidez, os movimentos são enérgicos e contínuos, de modo que a criança precisa de uma alimentação frequente e um sono longo. Durante toda a infância, as irritações produzem sintomas muito fortes, como a picada de uma pulga, que nestes produzem uma forte reação e num adulto não é mais do que um ponto vermelho. Eles são também afetados facilmente por afecções espasmódicas ou convulsões em consequência de causas relativamente ligeiras. A juventude, Barthez chama de “o verão da vida”, onde as doenças possuem uma impetuosidade e uma efervescência estampado nas hemorragias frequentes, e as febres têm periodicidade terçã. Na idade madura, os movimentos de congestão irregular dos humores estão menos precipitados, e determinam com mais frequência, fluxos cerrados ao invés das hemorragias. As febres têm periodicidade quartã, e por consequência a recorrência é tardia e sua cadeia mais longa. Na velhice, as forças ativas murcham a medida que a vitalidade se extingue. As partes se tornam menos sensíveis e a impotência para todos os exercícios dispõe o homem à morte. (Ibid., 324).

Para Barthez, o sexo feminino possui uma semelhança com a juventude, pois os órgãos das mulheres possuiriam mais vitalidade, seu pulso é mais veloz, e possuem mais vivacidade. Barthez relata que as mulheres conservam por mais tempo uma constituição jovem e atingem com mais frequência a idade avançada. Sua longevidade relativa poderia ser devido a elas estarem menos expostas a uma vida agitada e a não se exporem aos mesmos perigos que os homens. Mas Barthez, embora não negue estes fatos, atribui maior relevância na maior duração da vida das mulheres à sua juventude relativamente prolongada, o que em última instância, remete a maior vivacidade delas.

 

3.13 O princípio da vida e a morte

 

Finalizando seu último capitulo, Barthez comentará sobre as afecções do princípio vital referentes à causa, aos fenômenos e ao momento da morte. Ele primeiro demonstra a “falsidade” das teorias que explicam pelas leis da física, a necessidade da morte do homem. Galeno, em seu livro sobre o marasmo, “teria sido o primeiro a observar que tudo que foi engendrado se corrompe, mas isto só é conhecido pela observação e não poderia ser demonstrado, a priori de uma maneira luminosa”. (Ibid., p.327). Por sua vez, Stahl teria dito que não poderíamos explicar por nenhuma razão física porque o homem morre no estado natural, quando ele não é atingido por causas externas ou doenças violentas, ou ainda porque o homem não poderia viver para sempre, ainda que possa viver por longo tempo.

Diz-se comumente que a morte natural acontece quando cessam inevitavelmente as funções vitais em virtude da extrema rigidez dos órgãos do corpo, consequente a um gradual ressecamento destes órgãos durante o curso da vida. É dito também que desde o nascimento, o corpo começa a perecer devido à imperfeita transmutação dos sucos nutrientes que servem à sua reparação, que se tornam cada vez mais acres, obstruindo os pequenos vasos gradualmente. Mas Barthez alega que estas explicações se baseiam por demais nas leis da física e que através delas é difícil explicar solidamente pelas razões físicas, a necessidade desta degradação e da própria morte. Estas explicações não dão conta, segundo a opinião de Barthez, da razão das variações de vitalidade que observamos nas diversas idades.

 

Em cada idade, a vitalidade ou a potência de reprodução durável do sistema inteiro de forças do princípio vital, deve ser estimado pela probabilidade da vida e pela mortalidade respectiva, própria a cada idade. As leis da vitalidade não podem se conciliar com o progresso das causas físicas das quais fazemos depender a morte natural. (Ibid., p.328).

 

Ainda criticando o uso das leis da física para explicar as causas da morte, Barthez comenta que estas leis não poderiam explicar, se a probabilidade da vida diminui rapidamente na velhice, por que este decréscimo é suspenso por algum tempo, entre os 85 aos 90 anos. Barthez ao observar as tabelas de mortalidade percebe que existem platôs, dentro de uma mesma faixa etária, onde a probabilidade da vida se altera e que ele denomina de “fluxos e refluxos”, o que não se explicaria pelas leis da física.

Barthez afirma que as leis primordiais da constituição do corpo vivo produzem elas mesmas, variações da mortalidade nas diversas idades e a causa primeira da morte natural é a necessidade dessas leis que regem a duração e o fim, assim como a origem e o desenvolvimento da vida. (Ibid., p. 329).

Estas leis trazem, segundo uma progressão variável, cujo crescimento é mais evidente nos últimos anos da vida, a desidratação dos sólidos e dos fluidos e o enfraquecimento do exercício das forças do princípio vital. O grau de mobilidade dos sólidos e dos fluidos facilitaria ou dificultaria o exercício das forças ativas que impediria ou favoreceria a reprodução completa das forças radicais. A desidratação dos fluidos e sólidos, juntamente com o enfraquecimento das forças do princípio vital, são efeitos simultâneos que exercem entre si uma ação recíproca, que podem acelerar ou retardar a morte, se transformando em causas secundárias.

Percebe-se nas explicações de Barthez que ele atribui a morte natural às leis primordiais que então trariam um gradual ressecamento dos fluidos e sólidos - o que não deixa de ser uma explicação física e humoral - juntamente com um enfraquecimento na função das forças vitais. Embora ele aceite em parte a implicação das leis da física na morte natural, elas seria apenas uma das causas secundárias às leis primordiais. O ressecamento, uma causa secundária, estaria em concurso com o exercício das forças do princípio vital, que estariam sob o comando das leis primordiais, que então regeriam “o começo, a duração e o fim”. Barthez afirma que “o espírito da vida possui leis próprias, pelas quais ele sustenta e destrói o corpo organizado que ele anima, e as condições físicas que ele pode dar à matéria o mantém mais ou menos ligado à ela”. (Ibid., 330).

Nesta última afirmação, percebemos mais uma vez um círculo, algo que não tem começo nem fim, entre as forças do princípio vital e a matéria e suas leis físicas, uma conjunção ou concurso de uma série de leis secundárias que trabalham em simultaneidade pela manutenção da vida, que é guiada por leis primordiais que lhe são próprias e que só podem ser observadas.

A seguir, Barthez faz algumas considerações sobre as causas próximas mais comuns da morte, que seriam as fortes lesões dos órgãos vitais em consequência de uma violência externa, ou ainda pelo efeito de doenças. A corrupção dos órgãos, que são as causas (próximas) mais comuns da morte, poderia ser fortemente agravada em certas épocas do ano. Utilizando mais uma vez as tabelas de mortalidade de diversos países, Barthez afirma que nas zonas temperadas os tempos de maior mortalidade são os tempos vizinhos aos solstícios e equinócios. Os solstícios de inverno e verão produziriam as grandes variações de temperatura da atmosfera. Os equinócios, embora não produzissem alterações tão marcantes em relação ao frio e ao calor, seriam responsáveis pelas intempéries de secura, umidade e ventos, e neles a temperatura variaria mais frequentemente em sentido contrário. Através de alguns exemplos, Barthez confirma sua afirmação de que seria fácil de perceber como as grandes e frequentes variações de ar são extremamente nocivas às pessoas portadores de doenças crônicas. E seria por este motivo que os tempos vizinhos aos equinócios e aos solstícios trazem um aumento da mortalidade. (Ibid., 331-5).

Em seguida, Barthez vai tratar dos fenômenos que estão envolvidos na morte. Ele define a morte como “a cessação irrevogável da sensibilidade e dos movimentos vitais”. (Ibid., 336). Partindo da irrevogabilidade (momentânea) ou não da morte, Barthez cita vários autores e discorre sobre a incerteza dos sinais da morte e sobre a dificuldade de se assegurar, quando a morte seria absoluta e irrevogável, ou se aparente e reversível. Somente diante de sinais de putrefação e de lesões físicas de grande magnitude, que impeçam qualquer renovação das funções vitais, se poderia afirmar tal irrevogabilidade, ou a morte real.

Quando a morte é apenas aparente, como nos afogados e nos sufocados por vapores pestilentos, a sensibilidade perceptível cessa com os movimentos do pulso, da respiração e outros movimentos vitais, mas uma sensibilidade muito lenta e fraca dos movimentos tônicos e vitais imperceptíveis persiste. Barthez atribui à conservação dos movimentos tônicos, mesmo que extremamente fracos, o impedimento da putrefação em certos casos de morte aparente, citados por Barthez, de seu colega Bruhier, sobre pessoas que teriam voltado à vida depois de haverem perdido o pulso, a respiração e o calor natural por várias horas ou dias. 

A seguir, Barthez descreve os sintomas presentes no homem que está morrendo. Segundo afirma Barthez (Ibid., p. 340) “todos os fenômenos pelos quais a morte começa e culmina na morte real, se a morte não é súbita, são relativos às alterações graduais das forças do princípio vital e às diversas afecções da alma. Os sintomas que acompanhariam esta evolução variariam segundo o estado dominante, convulsivo ou de atonia que precederiam a morte. Se a atonia fosse o estado mais constante e geral nas ultimas horas, a visão e a audição se perderiam pouco a pouco, assim como o movimento do coração e da respiração e da voz, e o homem sofreria um desfalecimento geral.

Ao contrário, se é o estado convulsivo que domina nas últimas horas da vida, a agitação ou as contrações dos diversos órgãos parecem ser “os últimos esforços automáticos do princípio vital para resistir à dissolução da máquina.” (Ibid., p.341).

Barthez nesta frase chama o corpo de máquina, sem nenhuma explicação, sem apresentar isto como um problema. Mas havia aí bem definido a máquina, e o princípio vital, separados, mas interligados e dependentes para a manutenção da vida.

Barthez então descreve a morte se apresentando, em seus últimos momentos, sob natureza convulsiva, onde os traços usuais da face se tornariam decompostos, adquirindo uma aparência horrenda, com os lábios tombados, os olhos fixos, o corpo trêmulo, quando “num tremor suave e funesto a alma rompe seu elo”. (Ibid., p.341).

Barthez comenta sobre a alma e como esta pode estar afetada na hora da morte, em sua inteligência, e em suas paixões, o que produziria uma variedade de fenômenos interessantes. Na proximidade da morte, assim como nos momentos que antecedem o sono, Barthez ressalta a frequência um estado de delírio, ou poderia ocorrer um enfraquecimento da inteligência. Segundo Barthez, as leis da união da alma com o princípio vital fariam nascer o delírio, ou então ocorreria um desacordo das forças sensitivas em relação à vigília e à saúde. Barthez aqui cita a existência de leis que regem a relação da alma com o princípio vital, embora ele não descreva ou cite qualquer detalhe maior sobre o assunto. Cita também a inteligência e as paixões como integrantes da alma.

Em alguns casos, quando uma revolução perniciosa causada por forças funestas cessa por ocasião da gangrena do órgão afetado, as forças sensitivas, livres da simpatia destes órgãos, readquirem mais harmonia em sua distribuição, e o estado de inteligência pode ser restabelecido, como é descrito por Barthez em numerosos moribundos nos quais o delírio se dissipa. Pode ser também que, em consequência de um órgão que se gangrena, em um homem preste a morrer, ocorra um considerável aumento de energia para outro órgão, fazendo com que este homem seja atacado por um enorme apetite, que não traria bons sinais de recuperação, mas sim apenas uma transferência de forças para o estômago, por simpatia, que antecederia a morte. Barthez afirma que é por uma conversão semelhante de forças (sensitivas) das quais o cérebro é o centro da sensibilidade nervosa, que este órgão pode exercer mais vivamente suas funções, e a inteligência poderá se exaltar por um efeito das leis de conexão da alma pensante com o princípio vital. Em outras palavras, por um rearranjo das forças sensitivas, consequente a um agravamento de um órgão, estas forças sensitivas se encaminhariam para o cérebro, centro destas forças. Seria devido a este motivo que certas pessoas quando próximas à morte se tornam loquazes e presas de uma imaginação que nunca tiveram. 

A alma pode ser ou não ser afetada pelas paixões nos últimos momentos da vida, pois as paixões só existem quando há consciência, e estão ausentes quando os homens estão em delírio. Quando a alma conserva suas forças até o fim, (ou seja, quando o homem tem sua consciência preservada), o doente pode sentir tristeza e agonia de sentimentos que a doença mesma produz, ou se entregar à tristeza e à inquietude. Barthez defende a opinião que esta angústia é mais rara, e será sempre afastada da morte absoluta por alguns momentos, de modo que os últimos instantes de vida podem ser agradáveis. Barthez comenta que Buffon discordou das pessoas que acreditavam que a dor que acompanha a sensação de morrer poderia se prolongar. Segundo Barthez, mesmo que esta sensação seja dolorosa - e para ele, não é - ela ocuparia apenas um instante, se a extinção da sensibilidade for súbita. Se esta extinção for gradual, esta dor seria como outras, se dissipando e enfraquecendo à medida que a morte se aproximasse. A atenção necessária para sustentar esta ideia aterrorizante deve diminuir à medida que aumenta o estado de fraqueza que antecede a morte, da mesma forma que todas as outras ideias tristes que pudessem atormentar a alma. Barthez observa ainda que é por este motivo que os moribundos não choram, pois sua extrema fraqueza impede os movimentos espontâneos e as paixões não seriam frequentes num estado tão distante da natureza.

Barthez considera que “a morte poderia ser alegre se os homens a vissem como a última função da vida, ou um como um tributo que eles devem à natureza segundo a ordem estabelecida por seu Autor.” (Ibid., p. 346). Mas Barthez afirma que os homens se desviaram desta visão simples, e assegura que as instituições humanas teriam corrompido o homem até na hora da morte. 

Finalmente, Barthez vai tecer suas considerações sobre o que acontece na morte em relação à dissolução do corpo, à extinção das forças do princípio vital e à separação da alma. 

Barthez afirma que, quando a morte ocorre, as partes do homem se dispersam e o corpo animal se dissolve em obediência aos outros princípios do movimento e da vida que estão espalhados pelo universo. Embora o homem só veja na morte a quietude e os cadáveres, Bathez afirma que tudo é vivo e que a morte é, aos olhos do Deus supremo, apenas um modo da matéria. Segundo a visão de Barthez:

 

Os elementos das coisas mortais não são alterados quando eles sofrem todas as vicissitudes da geração e da corrupção. As formas dos corpos organizados e vivos nas quais estes elementos são combinados se decompõem, se reproduzem sem cessar, e vemos sempre reinar a bela ordem (observada por Aristóteles) onde os nascimentos se opõem aos progressos da destruição, como a morte limita a extrema fecundidade da natureza. (Ibid., p. 347).

 

Vemos aqui surgir a visão vitalista, da qual Barthez comungava, onde os conceitos de concurso, conjunto e harmonia não se limitam à vida humana ou animal, mas se estendiam a uma visão de conjunto e integração que abarcava todo o universo, onde a morte e a vida são complementares.

Reill (2005, p. 158) afirma que todos os vitalistas do Iluminismo compartilhavam, em maior ou menos escala, da ideia que a economia vital não poderia focar somente nas relações existentes dentro de um círculo de organização. Esta visão levou a um interesse em investigar sobre o desenvolvimento desta organização, sustentando que todas as entidades vivas eram parte de uma dinâmica eterna universal que envolvia igualmente intercâmbio e transformação. 

Barthez discute então o que sucede com o princípio vital após a morte do homem. Se este princípio da vida for uma faculdade unida ao corpo vivo, é certo que ele perece com o corpo. Se ele for um “Ser” distinto do corpo e da alma, como ele afirma ser mais provável, ele pode perecer com as forças no corpo que ele anima, como pode também passar para outros corpos humanos, e os vivificar, em um processo de metempsicose. 

Supondo que o princípio vital seja emanado de um princípio que Deus criou para animar os mundos, seria igualmente possível imaginar que ele retornasse à sua origem e se reunisse a este princípio universal.

Mas qual seja o destino do princípio vital após a morte do homem, Barthez afirma que logo após a morte “sua alma volta a Deus que a doou e lhe assegurou uma duração imortal”: 

 

Deus, ao criar os espíritos, os libertou da lei geral que condena ao fim tudo que um dia começou. Ele assegura que os espíritos devem a Deus a imutabilidade de sua existência, e que Deus renovará esta existência no fim dos tempos, onde os espíritos verão os corpos celestes se dissolverem, o espetáculo da natureza desaparecer, e o Tempo, que fez todas as coisas nascerem e morrerem, será absorvido no abismo da eternidade.

 

Esta passagem apocalíptica que fecha o Nouveuax Éléments de la Science de l’Homme reafirma a crença de Barthez em uma alma imortal, que se reunirá a Deus, após a morte do homem e que sobreviverá ao final dos tempos. 

Haigh (1977), em seu interessante artigo defende que, assim como os mecanicistas e animistas, Barthez era dualista, pois ela entende que Barthez, ao propor “como sendo a maior probabilidade” que o princípio vital seja um “ser” independente da alma e do corpo, seria equivalente a ele dizer que a matéria seria inerte e só animada pelo princípio vital, assim como a alma animaria a matéria inerte para os animistas, e o comandaria. Para Haigh, os vitalistas seriam dualistas, e os materialistas ou solidistas, como von Haller e Bordeu, seriam monistas.

Reill se opõe à visão de Haigh, pois, mesmo que o princípio vital não esteja no interior da matéria, como Barthez afirmou, ele possui com a matéria uma conexão tão íntima, que seria esta animada, e deixa apenas aos mecanicistas a visão da matéria ser inerte.

Entretanto, Barthez deixa em aberto o que sucede ao Princípio da Vida, após a morte. Embora ele faça apreciações metafísicas, como ele avisa em outro momento deste livro que o faria, por ser um pensador indutivista, que defende as causas experimentais, não chega a concluir a questão a respeito do destino do princípio vital deixando em aberto algumas possibilidades, que estariam em dependência com este princípio ser ou não um “ser” distinto ou parte da matéria. Embora ele tenha se colocado mais a favor ou se inclinado a defender que o princípio vital era uma terceira “coisa”, nem alma nem corpo, no momento final de seu livro, deixa em aberto seu destino final. Mesmo que o princípio da vida não sobreviva enquanto substância, que não sofra transmigração, que pereça com o corpo, Barthez defende que a morte é parte de um ciclo vital e que quando as partes do homem se dispersam, o corpo animal se dissolve em obediência aos outros princípios do movimento e da vida que são espalhados pelo universo. 

 

CONCLUSÃO

 

Embora a historiografia do século XVIII, até a poucos anos raramente se referisse ao vitalismo, isto vem gradativamente sendo corrigido à medida que se transforma ou se alarga a definição de Iluminismo.

Todas as interpretações de Was ist Aufklärung? e as discussões sobre quem seriam os inimigos do Iluminismo serviram para excluir os vitalistas da definição de Iluminismo. Apenas recentemente, quando foram realizados estudos mais cuidadosos sobre o Iluminismo, alcançando-se, assim, uma percepção do caráter mais pluralista deste período, é que ele deixou de ser percebido apenas como o herdeiro da Revolução Científica e do Racionalismo, ou como um período de ideologia uniforme, no qual uma única doutrina (a filosofia natural mecanicista) teria não só dominado, mas seria considerada a expressão essencial da verdade e do valor da época. Somente através da mudança de perspectiva sobre o Iluminismo é que veio a se perceber o vitalismo, tão elaboradamente debatido na França e em alguns outros países da Europa, como parte integrante e relevante deste movimento. Assim, o vitalismo vem deixando de ser um suspeito contra-Iluminismo, um confuso proto-romantismo ou, na melhor das hipóteses, um movimento de transição entre o Iluminismo e o Romantismo.

É também somente através de um estudo aprofundado do vitalismo iluminista que suas características particulares emergem, mostrando-se uma doutrina com linguagem própria, formada por questões cruciais para a época, com ampla circulação e marcante interesse para vários pensadores de destaque ao longo do século XVIII, tendo presença clara na história intelectual e científica do Iluminismo, a ponto de vermos o vitalista Bordeu como personagem de primeira linha no famoso texto de Diderot, Le Rêve de d’Alembert (1869).

A negligência com que a historiografia tratou o vitalismo deve-se também em parte aos historiadores terem se baseado nos arquivos construídos no século XIX, de visão positivista, herdeira da “recém-vitoriosa” medicina de Paris, a chamada medicina científica, que desvalorizava a medicina filosófica e holística de Montpellier, ou a “ciência do homem inteiro”.

Ao me propor a contar a história do vitalismo do século XVIII e seus conceitos, tive que fazer um breve contraponto com a filosofia natural mecanicista, e também expor de maneira sucinta as ideias de outras doutrinas que fizeram parte deste período, como o animismo e o solidismo.

Para melhor trabalhar os conceitos vitalistas, adotei a obra original de Paul Joseph Barthez, o Nouveaux Éléments de la Science de l’Homme, publicada em 1778 e considerada a obra mestra e a melhor síntese do pensamento do vitalismo iluminista. Através desta obra, Barthez propõe uma revolução na fisilogia desde os seus primeiros conceitos, denominando seu empreendimento de “ciência do homem”.

Inicialmente, em seu Discours Préliminaire, Barthez nos expõe o que ele define de “o bom método de filosofar”, denominado por ele de empirisme raisonné, que, segundo ele, seria basicamente a observação cuidadosa de fatos seguidos de analogias, onde ele não procura as causas primeiras, mas as causas que a experiência permitisse observar.

O conceito principal da obra de Barthez, e pilar central do vitalismo, o “princípio vital”, nos é apresentado extensivamente através de exemplos e experiências, mas sua origem não pode, segundo Barthez, ser, em última intância, conhecida, pois este princípio faz parte da categoria de brute-facst ou faites-principes. Durante toda sua obra, Barthez enfatiza o limite dos nossos sentidos na explicação das causas primeiras e apresenta possibilidades, suposições e deduções que ele infere analogicamente através de fatos e experiências. Barthez nos apresenta as forças que compõe o princípio vital, ou seja, as forças sensitivas e motrizes, construindo através destas forças um conceito que envolve seus modos de ação e que, pode-se dizer, constituem os conceitos mais interessantes do vitalismo: as simpatias e as sinergias. As simpatias e sinergias farão parte do complexo sistema de interconexão das forças do princípio vital, que Barthez denominou de “sistema inteiro”. A maneira dinâmica como estas forças se inter-relacionam, em modo e ritmo, mantendo a vida, é cuidadosamente apresentada e exemplificada no Nouveaux Éléments de la Science de l’Homme.

É a sofisticação e cuidadosa performance de argumentação e contra-argumentação apresentadas ao longo deste livro que caracterizam o valor científico do trabalho de Barthez. Seu reconhecimento como médico inovador se deveu, no século XVIII, sobretudo a este poder argumentativo na construção de seu modelo vitalista, bem como às suas complexas interações com seus pares, aspectos que, só com a leitura que supomos termos conseguido apresentar, podem levar a que nós hoje possamos lançar um olhar de maior respeito e admiração sobre esses esforços não menos iluministas que a física newtoniana, a qual, aliás, Barthez não cessa de reivindicar como modelo epistemológico.

Assim, Barthez desenvolve uma extensa fisiologia relacionada ao princípio da vida, onde fisiologia era o estudo dos organismos vivos, em oposição aos objetos mortos ou matéria bruta, e cujo objetivo principal era descobrir as leis singulares que governavam a existência dos organismos dotados de “vida”. 

A lei primordial dos seres organizados era a de que eles viveriam e funcionariam em virtude de atividades interconectadas da “economia animal”, que eram dotados de algum tipo de força vital ou forças vitais. Portanto, fisiologia seria o estudo das operações harmoniosas, inter-relacionadas e sistêmicas, que, simultaneamente, manifestavam e sustentavam a vida dos corpos que gozavam de vitalidade. O conceito de fisiologia concebido por Barthez e pelos médicos de Montpellier englobava não apenas os seres humanos, mas também animais e plantas, embora, na prática, a fisiologia vitalista focasse quase exclusivamente nos seres humanos. No vitalismo de Montpellier existia uma inevitável conexão entre a problemática fisiológica e a antropológica. Esta correlação foi reforçada pelo conceito de “organização” forjado em Montpellier, que necessariamente vinculava e conectava os fenômenos humanos, terrestres e universais, saudáveis ou patológicos como um todo.

Nada poderia ser excluído, porque qualquer processo poderia ser a chave que explicaria a atividade do todo interconectado. A medicina baseada na fisiologia teria que levar em conta qualquer influência, atividade ou circunstância que afetassem a vitalidade geral e a saúde. Tinha que ser promulgada como a ciência do l’homme entier

O que é fascinante sobre estas questões é que elas falam de assuntos que nós estamos enfrentando novamente: o que define a vida e a morte, o que é a matéria e até que ponto a moralidade é natural ou cultural.

A afirmação vitalista concernente à ligação íntima entre o homem e a natureza e a celebração da criatividade e da sublimidade desta natureza, fala diretamente da nossa necessidade de repensar a questão do papel da humanidade na relação com o meio ambiente. De fato, após sobretudo as pesquisas de Reill e Williams, uma imagem mais ampla e multifacetada do século XVIII se impõe, vindo a incluir o vitalismo iluminista como parte integrante do Iluminismo. Desse modo, o vitalismo – onde a natureza é uma unidade, humana, planetária ou universal – emerge, de certa maneira, como uma nova ressonância do século XVIII com nossa época, quando graves problemas ecológicos da atualidade, isto é, a vida humana e a saúde planetária, vieram a serem vistas como inextrincáveis.

A partir deste estudo, pude perceber que as perguntas e questões colocadas pelos vitalistas ainda são relevantes embora, é claro, a maior parte de suas respostas não o sejam. Em todo caso, foi particularmente interessante para mim me dedicar ao estudo de uma corrente de pensamento que manteve uma cuidadosa argumentação, meticulosa e criativa, metodologicamente coerente, embora não tenha sido alçada ao pódio dos saberes vencedores. De certo modo, aprendi assim a respeitar, ainda mais, o esforço do pensamento e da pesquisa honesta e metodologicamente autoquestionadora que, não atingindo as glórias máximas da consagração da posteridade, recebeu, no entanto, a honrosa recompensa do trabalho árduo e da coerência intelectual.

REFERÊNCIAS                                                            

 

Fontes primárias

 

BARTHEZ, Paul-Joseph. Nouveaux éléments de la science de l’homme. Tome Premier. Montpellier, 1778. Disponível em: http://www.books.google.com >. Acesso em: 15 mar. 2009.

BORDEU, Théophile. Recherches sur les Pouls par rapport aux crises. Tome III, Seconde Partie. Paris, 1772. Disponível em: http://www.books.google.com >. Acesso em: 07 mar. 2009.

DIDEROT, Denis. D’Alembert’s dreams. 1769. Disponível em: http://googlebooks.com.br >. Acesso em 03 out. 2009

DUMAS, Charles, Louis. Principes de Physiologie, ou introduction à la science experimental philosophique et medicale de l’homme vivant3 vols. Paris, 1800-1803.

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Fontes secundárias

 

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Artigos

 

DI TROCCHIO, Federico. Paul-Joseph Barthez et l’EncyclopédieRevue d’histoire des sciences, v. 34, n. 2, p. 123-136, 1981. Disponível em: http://www.persee.fr>. Acesso em: 10 dez. 2009.

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DULIEU, Louis. Le Mouvement scientifique montpelliérain au XVIIIe siècle. Revue d’histoire des sciences et leur applications, v. 11, n. 3, p.227-249, 1958. Disponível em: http://www.persee.fr>. Acesso em: 10 dez. 2009.

DULIEU, Louis. Paul-Joseph Barthez. Revue d’histoire des sciences, v. 24, n. 2, 1971. Disponível em: http://www.persee.fr >. Acesso em: 10 dez. 2009.

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HALLER, Albrecht von. A Dissertation on the sensible and the irritable parts of animals. London: J.Nourse, 1755.

PAGEL, Walter, Harvey and Glisson on irritability with a note on Van Helmont, cidade, Bulletin of the History of Medicine., v. 41, p. 497-514, 1967. 

RUSSO, Marisa. Irritabilidade e sensibilidade; fisiologia e filosofia de Albrecht von Haller, In: MARTINS,R, A.(Ed). Filosofia e História da Ciência no Cone Sul; 3º Encontro, Campinas: AFHIC, 2004, p. 310-319.

 

APÊNDICE A - PRINCIPAIS OBRAS DE BARTHEZ SEGUNDO DULIEU (1971) E DI TROCHHIO (1981)

 

Observation sur la constitution épidémiques de l’anée 1756 dans Le Cotentin- Memóires de mathématiques et de physiques de l’Academie Royale des Sciences. I, III, 1760, p. 438.

Artigos da EncyclopédieEvanouissement; Expansion; Externe; Extenseur; Extispice; Extispice; Face; Fascination; Faune; Fausses-côtes; Faux; Femme; Femur; Fessier; Fibre; Fibrille; Flechisseur; Follicule; Force des animaux. 

Quaestionnes medicae duodecim- Montpellier, Vve J. Martel, 1761.

Oratio acadêmica de principio vitli homonis, quam habuit in Ludoviceo medico Monspeliensi pro solemni studiorum instaratione die 31 octobris 1772. Montpellier, Rochard, 1773.

Nova doctrina de functiononibus humanae – A.-F. Rochard, 92 p. in 4.

Nouveaux Élements de la Science de l’homme – I, Montpellier, J. Martel, 1778 ; Paris, Goujon & Brunot, 1806.

Essai d’une nouvelle méchanique des mouvements progressifs de l’homme et des animaux. Paris, 1782, 16 p. in-4 (d’aprés le catalogue de la B.N.)

Libre discours sur la prérogative que doit avoir la nobless dansla constitution et dans lês état generaux de la France. Paris, 1789. In n.8

Nouvelle Mécanique des mouvements de l’homme e des animaux. Carcassonne. 1798.

Du traitements métodiques des fluixon qui sont lês élements essentiels dans divers genres de maladies. Memóires de la Societés Médicales d’Emulation. T. 2, Paris, Richard Caille& Ravier, n. VII, p. 1-22. 

Sur lês coliques iliaques qui sont essencialment nerveuse. Paris. Richard Caille& Ravier, na. VIII, p. 401-431.

Traité des maladies goutteuses. 2 vols. Paris, 1802.

Theorie Du Beau dans la Nature et lês Arts – Paris, Vigott frères. 1807- (póstuma)

Consultations de médicine- 1810

 

 

 

APÊNDICE B - Índice dos Capítulos e Partes do Nouveaux Éléments de la Science de l’Homme de P.-J. Barthez (edição de 1778)

 

DISCURSO PRELIMINAR

Primeira Seção:

Os princípios fundamentais do método na filosofia natural

 

Segunda Seção:

Dos obstáculos que os grupos mais célebres na ciência do homem colocam ao progresso da ciência, ao se separarem dos princípios do bom método de filosofar

 

Terceira Seção:

Da conformidade da doutrina deste trabalho aos verdadeiros princípios do método de filosofar

 

INTRODUÇÃO

Visão Geral dos Princípios do movimento e da vida que animam a Natureza.

 

CAPÍTULO I

Exposição das diversas opiniões dos filósofos e médicos que acreditaram que o Princípio da vida no homem não é um ser distinto do corpo e da alma.

 

CAPÍTULO II

Exposição das diversas opiniões dos Filósofos e Médicos que acreditaram que o Princípio da vida é, no homem, um ser distinto do corpo e da alma.

 

CAPÍTULO III

Da Natureza do Princípio vital do homem

 

Primeira Seção:

O Princípio vital do homem deve ser concebido por ideias distintas daquelas dos atributos do corpo e da alma?

 

Segunda Seção:

O Princípio Vital é uma substância ou uma modalidade do homem vivo?

 

CAPITÚLO IV

Das forças sensitivas do princípio da vida nos sólidos do corpo animal

 

Primeira Seção:

Da definição das forças sensitivas e das forças motrizes do Princípio Vital, e das relações de influência que estas forças têm entre elas

 

Segunda Seção:

Das diferenças que existem entre as forças sensitivas dos diversos órgãos, relativamente ao grau e a espécie de sensibilidade

 

CAPÍTULO V

Das forças motrizes do princípio da vida nos sólidos do corpo animal

 

Primeira Seção:

Forças Musculares

 

Segunda Seção:

Forças Tônicas

 

Terceira Seção:

Da influência que as forças tônicas e musculares têm sobre o grau de coesão permanente do tecido das partes moles

 

CAPÍTULO VI

Das forças sensitivas e motrizes do princípio da vida nos fluidos do corpo animal.

 

CAPÍTULO VII

Do Calor Vital

 

Primeira Seção:

Dos Fenômenos da luz e da eletricidade, que as forças vitais produzem no homem e nos animais

 

Segunda Seção:

Das Leis Gerais do Calor dos Animais

 

Terceira Seção:

Das diferenças gerais do calor vital nas diversas espécies animais; da relação que existe em cada espécie, o grau fixo deste calor, com a força e a amplitude dos órgãos da respiração

 

CAPÍTULO VIII

Das Simpatias ou comunicações particulares das forças do Princípio Vital nos diversos órgãos do corpo humano

 

Primeira Seção:

Das Simpatias dos órgãos que não são ligados por nenhuma relação sensível

 

Segunda Seção:

Das simpatias dos órgãos que se parecem na sua estrutura e nas suas funções

 

Terceira Seção:

Das Simpatias dos órgãos que possuem entre eles conexões particulares

 

CAPÍTULO IX

Das Simpatias das forças do Princípio vital nos órgãos similares que são ligadas em sistemas particulares ou nos vasos sanguíneos e nervos

 

Primeira Seção:

Das Simpatias particulares que observamos entre os vasos sanguíneos e os nervos

 

Segunda Seção:

Da simpatia que cada vaso sanguíneo ou cada nervo possui com seu sistema

 

CAPÍTULO X

Da relação que possui a conservação das funções de cada órgão composto, à integridade das simpatias dos nervos e de seus vasos sanguíneos com seus sistemas respectivos

 

Primeira Seção:

Da cessação dos movimentos nos músculos nos quais os nervos e os vasos sanguíneos foram interrompidos

 

Segunda Seção:

Das modificações singulares que indicam no local na espécie da lesão dos nervos de um órgão, os fenômenos diversos das afecções paralíticas deste órgão

 

Terceira Seção:

Das principais exceções quanto à necessidade de interceptação imediata e constante das funções de todo órgão, cujos nervos sofreram uma lesão grave

 

CAPÍTULO XI

Das simpatias que as forças de cada órgão possuem com aquelas de todo o corpo

 

Primeira Seção:

Do aumento das forças motrizes ativas em todo corpo, que é causada pelo trabalho da digestão

 

Segunda Seção:

Da diminuição do exercício das forças sensitivas de todo o corpo durante o sono, que causa a sucessão de excitação à diminuição das forças sensitivas em um órgão particular.

 

CAPÍTULO XII

O sistema inteiro das forças do Princípio Vital: e das alterações essenciais que podem afetar este sistema

 

Primeira Seção:

Artigo Primeiro: Teoria-prática das doenças ditas nervosas ou vaporosas

Artigo Segundo: Teoria prática das doenças malignas

 

Segunda Seção:

Observações sobre as alterações essenciais do sistema das forças do princípio vital que são produzidos por diversos venenos e medicamentos fortemente ativos

 

CAPÍTULO XIII

Do Temperamento, ou do conjunto de afecções constantes que especificam em cada homem o sistema de forças do Princípio Vital

 

Primeira Seção:

O método direto de conhecer o temperamento

 

Segunda Seção:

Do método indireto de conhecer o temperamento

 

Terceira Seção:

Das relações que o temperamento possui nos diversas lugares da Terra, às causas gerais que agem sobre o físico do homem e sobre seus costumes

 

CAPÍTULO XIV

As modificações gerais que as diversas idades dão ao sistema das forças do princípio vital, e do fim deste princípio na morte do homem

 

Primeira Seção

Artigo primeiro: Da divisão das idades fundada sobre as variações das mortalidades respectivas nos diversos períodos da vida humana

Artigo Segundo: Das modificações gerais que cada idade da vida imprime ao sistema de forças do Princípio vital

 

Segunda Seção:

Artigo primeiro: Das causas da morte

Artigo segundo: Dos fenômenos e dos seguimentos da morte

 

 

[1] Peter Hanns Reill, alemão, Professor and Director, Center of 17th &18th Centuries Studies and Andrews William Clark Memorial Library. Department of History, UCLA.

[2] Gascoigne define newtonianismo como as ideias e conceitos de Newton, representados por diversas pessoas, em diversas culturas, que se consideravam seguidores da filosofia de Newton.

[3] Para maior aprofundamento dessa visão, ver Max Horkheimer, “Reason against Itself: Some Remarks on Enlightenment,” in James Schmidt (ed.), What is Enlightenment in Eighteenth Century Answers and Twentieth-CenturyQuestions (Berkley: University of California Press, 1996).

[4] Querries- Opticks, apêndice, numerados, iam sendo atualizados em cada edição.

[5] Georg Ernst Stahl (1660-1734) – médico, químico e fisiologista alemão. Autor das ideias animistas do século XVII-XVIII, inspiradoras do vitalismo. Professor da Universidade de Halle, Alemanha.

[6] Hermann Boerhaave- (1668-1738), nascido em Voorhout, próximo a Leiden. Médico e professor de influência e fama exterma na primeira metade do século XVIII. Professor da Universidade de Leiden.

[7] Albrecht von Haller, (1708-1777), suíço, médico, inicialmente estudou na Universidade de Tübingen, transferindo-se depois para Leiden, onde foi aluna de Boerhaave no auge de sua fama.

[8] Consta na nota 6, p. 294, de Reill (2005), que segundo Rosalynne Rey, o termo “vitalismo” foi cunhado por Charles Louis Dumas para caracterizar uma mediação 

[9] Sobre o sistema médico de Hermann Boerhaave, ver: Cunningham, Andrew. Medicine to calm the mind: Boerhaave’s medical system, and why it was adopted in Edinburgh. In Cunningham, Andrew and French, Roger. (Ed.) The medical enlightenment in the eighteenth century. Cambridge, Cambridge University Press. 1990.

[10] Sobre as ideias de Stahl, ver Geyer-Kordesh, Johanna. Georg Ernst Stahl’s radical Pietist medicine and its influence on the German Enlightenment. In Cunninghan, Andrew; French, Roger (Ed.) The medical enlightenment of the eighteenth century. Cambridge, Cambridge University Press, 1990. E também: French, Roger. Sickness and the Soul: Stahl, Hoffmann and Sauvages on pathology. Cunningham, Andrew; French, Roger (Ed.). The Medical Enlightenment of the Eighteenth Century, Cambridge, Cambrige University Press, 1990. E também: Reill, Peter Hanns. Vitalizing Nature in the Enlightenment. Cambridge. California. University of California Press. 2005, p.123-127.

[11] Para um maior detalhamento das ideias de Theóphile Bordeu, ver Williams (1994, p. 32-41; 3) e também Williams (2003, cap. 4 e 5).

[12] Nota 18 de Di Trocchio (1981).

[13] Informações biográficas retiradas de: Dulieu, Louis. Paul-Joseph Barthez. Revues d’histoire des sciences, Anné 1971, vol.24, numéro 2, p.149-176. http://www.persee.fr e também: Di Trocchio, Federico. Paul-Joseph Barthez et l’EncyclopédieRevue d’histoire des sciences, année 1981, volume 34, numero 2, p.123-136. http://www.persee.fr

[14] O artigo escrito por Barthez sobre sua experiência médica durante a epidemia no Cotentim foi: Observation sur la Constituition épidémique de l’anée 1756 dans Le Cotetin, publicado em Memóires de Mathématiques et de Physique de l’Academie royale des Sciences, ano 1760.

[15] Doravante denominado como NOUVEAUX  ÉLÉMENTS.

[16] Obras de Barthez em latim: Oratio academica de principio vitalis hominis (Montpellier: Rochard, 1772); Nova doctrina de functionibus naturae humanae(Montpellier: A.-Rochard, 1774).

[17] Houve duas outras edições. A segunda foi em 1806, e constou de dois volumes. A terceira foi de 1858, também de dois volumes, editada por um sobrinho de P.-J. Barthez, E. Barthez.

[18] O índice integral dos capítulos e seções do NOUVEAUX  ÉLÉMENTS, edição de 1778, estarão em anexo ao final desta dissertação.

[19] Para um aprofundamento nas ideias e conceitos da doutrina solidista, ver Ibid., pp. xiii-xviii.

[20] Embora Barthez não faça referência à origem desta lei da física, me parece ser relacionada com a a segunda lei de Newton, publicada em 1687, em seu trabalho Philosophiae Naturalis Principia Mathematica.

[21] Epist. I. ad Thessalonic. Cap. 3. v. 23. (Barthez cita uma passagem de São Paulo na Bíblia).

[22] Barthez comenta: “.. Santo Agostinho disse que os selvagens possuem um espírito vital, composto de sangue e de ar, que é dotado de sentimentos e de memória, mas que carece de inteligência, e que desaparece com a morte. L.de Scientia vera vita. Cap. 4. 

[23] Entre os historiadores de sua obra, existem ainda divergências quanto à classificação de seu trabalho - alguns o consideram mecanicista, outros o consideram animista, ou ainda vitalista. Embora com inclinações mecanicistas por formação (foi discípulo de Boerhaave), Haller criticou alguns pontos do mecanicismo clássico de Boerhaave, que atribuía todo movimento muscular à ação dos espíritos animais provenientes do cérebro, e, portanto, não conseguia explicar os movimentos do coração quando este era desligado do corpo. Haller considerava a matéria animada, mas esta animação era atributo ou advinda da própria matéria, e não vinda de um princípio externo. Por exemplo, ele atribuiu a causa de movimento de um órgão vital, como o coração, à sua própria constituição intima. O coração seria movido por uma causa desconhecida, que não dependeria nem do cérebro, nem de alguma artéria, mas de uma causa desconhecida que estaria escondida na própria estrutura íntima do coração. Portanto ele sugeriu a existência de uma propriedade do movimento animal que poderia estar ligada à organização ou à constituição da matéria viva (RUSSO, 2004). Assim, esta posição o colocaria em uma posição diferente da do mecanicismo clássico, do animismo, que atribuía o movimento à ação da alma, e também da dos vitalistas que, como veremos em Barthez, atribuíam o movimento à ação do princípio vital. 

[24] Ver em Temkin, Owsei. p. 651, IndroductionA Dissertation on the sensible and irritable parts of animals.

[25] Para um aprofundamento do conceito de irritabilidade, ver também o artigo de Walter Pagel sobre o assunto: Harvey and Glisson on irritability with a note on Van Helmont.

[26] O conjunto das experiências de Haller sobre a irritabilidade e a sensibilidade foi publicado no De partibus corporis humani sensibus e irritabilibus, lido para a Sociedade Real de Ciências de Göttingen em 22 de abril e 6 de maio de 1752. Foi publicado originalmente em latim e traduzido para o francês por Tissot sob o título Dissertation sur les parties sensibles et irritables des animaux em 1755.

[27] Ver no artigo de Elizabeth Haigh. Vitalism, the soul and sensibility: the physiology of Théophile Bordeu, 1976. 

[28] Uma planta, chamada citrullus colocynthis.

[29] Jalapa é uma substância catártica, obtida da raiz da Ipomoea Purga, conhecida na Europa desde o início do século XVII.

[30] Os zoófitos, em uma classificação zoológica anterior, era a denominação dada às esponjas marinhas, bem como às medusas, e aos pólipos, no século XVIII e XIX. Havia nesta época uma grande discussão se estes seres eram animais ou vegetais, ou intermediários, por isto este nome.

[31] Escamonea- (Convolvulus scammonea) é uma planta cuja resina é utilizada como purgativo.

[32] A teoria do flogístico foi criada por Georg Stahl nas primeiras décadas do século XVIII. O flogisto era libertado no ar durante a combustão. Todos os corpos combustíveis possuiriam flogístico. Esta teoria só foi contestada no final do século XVIII por Lavoisier.

[33] Terminologia médica do século XVIII sobre os tipos de febres.

[34] Colique de Poitou era uma doença que por ser comum na região de Poitou, na França, ganhou este nome. Segundo descrição de Forbes autor de uma enciclopédia de medicina prática de 1835, era uma patologia que cursava com violentas cólicas abdominais, retarçao da musculatura abdominal, e era acomoanhada de paralisia das extremidades. Sinônimos da época: cólica Pictonum; cólica saturnina, cólica vegetablis; cólica sicca, cólica nervosa, raquialgia; cólica pictorum (dos pintores, pelo chumbo); cólica seca, cólica saturnina. Dor de barriga seca. Forbes, John. The Cyclopedia of Practical medicine, vol.IV, London, 1835. http://www.google.books.com> 

[35] L’Homme Machine foi um livro publicado em 1745 por Julian de La Mettrie (1709-1751), nascido na França em Saint- Malo. Porém, esta expressão foi inspirada nos trabalhos e conceitos de Descartes.

[36] O grifo em cada homem é meu. É para ressaltar a visão de Barthez e dos vitalistas, dada aos sintomas de “cada um ser”, que deveriam ser tomados pela observação. No caso dos temperamentos, ele procurava o temperamento individual. Como vimos na discussão do capítulo anterior e vemos em toda obra, o individual está sempre ligado ao todo, assim como os elementos do corpo estão ligados por um conjunto de forças a todo organismo.

[37] Barthez define como não-naturais (non-naturelles), “as coisas que se pode olhar como sendo estranhas à Natureza ou ao princípio vital, mas que lhes sejam necessárias e úteis.” (Ibid., 285, nota a). Ele não se refere neste momento ao conceito que vinha da medicina grega dos “não-naturais”, mas que como veremos é relacionado ao que ele desenvolve.